Lins e Belmonte: Eficiência, ética e regulação formam a tríade do Direito na Era da IA
Por Julia Lins e Renata Belmonte * – A inteligência artificial (IA) tem transformado profundamente a sociedade, e no meio jurídico, isso não está sendo diferente. Escritórios de advocacia, departamentos jurídicos e o próprio Judiciário já utilizam sistemas baseados em IA para ganhar agilidade, reduzir custos, prever cenários e tomar decisões mais fundamentadas, exigindo dos profissionais uma nova postura: técnica, estratégica e, acima de tudo, ética.
Entre as aplicações mais consolidadas de uso da IA no Direito, destacam-se o uso de ferramentas de monitoramento jurisprudencial, de verificação e certificação de documentos, sistemas de gestão de processos com o uso de inteligência artificial, e, sobretudo, as análises preditivas com base em grandes volumes de dados jurídicos concretos.

O próprio sistema judiciário brasileiro vem criando ferramentas de IA para a otimização de processos. O Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, desenvolveu Victor, um robô de triagem de processos que já reduziu em até 80% o tempo de análise de recursos extraordinários, permitindo que atividades antes feitas em horas sejam concluídas em poucos minutos. Além do Victor, o STF também utiliza o VitórIA, que agrupa processos por similaridade de temas, o Rafa, que classifica processos de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, e a MARIA (Módulo de Apoio para Redação com Inteligência Artificial), que usa a inteligência artificial generativa para auxiliar na produção de diversos tipos de textos.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o sistema Athos filtra recursos repetitivos e auxilia na uniformização da jurisprudência, promovendo mais celeridade e previsibilidade às decisões. Já em escritórios e empresas, a revisão automatizada de contratos, como a implementada pelo Itaú Unibanco, acelera processos e reduz riscos operacionais. Além disso, sistemas de jurimetria têm sido usados para identificar padrões de comportamento do Judiciário, prever probabilidades de êxito e indicar a melhor estratégia entre acordo e judicialização.
Essas tecnologias oferecem ganhos tangíveis de produtividade, predição de cenários, economia de recursos e aumento da precisão em atividades rotineiras. Em um contexto econômico desafiador, como o do Brasil, esse tipo de eficiência representa um diferencial competitivo decisivo. A adoção de IA tem, inclusive, gerado impacto financeiro direto: o Tribunal de Contas da União, por exemplo, economizou mais de R$ 2 bilhões ao utilizar IA para identificar indícios de superfaturamento em obras públicas. E o próprio governo federal contratou ferramentas de IA com o objetivo de mapear precocemente os litígios que podem impactar as contas públicas — que somaram quase R$ 100 bilhões em 2024.
Mas, à medida que IA avança, também se impõem novos desafios éticos, técnicos e regulatórios que não podem ser negligenciados. A crescente dependência de sistemas automatizados requer mais do advogado, que precisará ser capaz não apenas de utilizar essas ferramentas, mas de compreendê-las criticamente, reconhecendo suas limitações e os riscos envolvidos, especialmente em relação a direitos fundamentais como privacidade, contraditório e devido processo legal.
O conhecimento técnico-jurídico segue sendo primordial, e o uso da tecnologia não veio para substituir os seres humanos. Como bem colocou o professor Karim Lakhani, da Harvard Business School ,”IA não substituirá os seres humanos – mas os seres humanos com IA substituirão os seres humanos sem IA”.
Essa consciência vem ganhando corpo também no mercado. Em evento recente realizado em São Paulo, que reuniu heads jurídicos de grandes empresas e especialistas em tecnologia, o uso da IA no setor foi tema central de debates. Foram apresentadas soluções que automatizam tarefas, apoiam a tomada de decisão baseada em dados e oferecem novos modelos de gestão de risco jurídico. O recado foi claro: quem não se preparar para lidar com essas ferramentas — tecnicamente e eticamente — estará em desvantagem.
Quando se fala de prevenção de litígios, por exemplo, associar o uso da IA pode ser decisivo para mapear demandas e identificar padrões de comportamento de consumidores, fatores que permitem que se tome medidas preventivas pautadas em dados concretos. Ferramentas de jurimetria já estão sendo usadas por empresas para redesenhar contratos, melhorar SACs e prevenir judicializações em massa.
O uso responsável da IA exige capacitação contínua, participação ativa de juristas no desenvolvimento das ferramentas, definição de critérios de transparência, possibilidade de auditoria e a criação de marcos legais adequados. Nesse sentido, temos uma oportunidade histórica de romper com a tradição reativa da legislação e liderar a construção de um futuro mais ético, seguro e equilibrado. Com visão estratégica e responsabilidade, o setor jurídico pode assumir o protagonismo na regulação e no uso consciente da IA, antecipando riscos, garantindo direitos e moldando as bases de uma sociedade verdadeiramente digital e ética.
Não se trata de substituir o ser humano, mas de fortalecê-lo por meio da inteligência ampliada, que atrela conhecimento jurídico com a inovação responsável. A interpretação de normas, a ponderação de princípios e a análise de casos complexos ainda são tarefas que exigem julgamento humano, algo que a IA, pelo menos em seu estágio atual, não consegue reproduzir com a mesma profundidade.
*Julia Lins é Chief Legal Officer do Albuquerque Melo Advogados, pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV e integrante das comissões Direito Civil, de Direito Aeronáutico, Espacial e Aeroportuário e de Direito Empresarial da OAB/RJ; Renata Belmonte é sócia do Albuquerque Melo Advogados na área de Contencioso Cível, pós-graduada em Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD) e com curso de especialização em Direito Civil pela Universidade de Coimbra, membro da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor, da Comissão Especial de Direito Bancário e da Comissão Especial de Direito Aeronáutico da OAB-SP e da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/RJ.
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