Mudar os registros do passado não é um caminho para valorizar a mulher

As mulheres continuam, bravamente, a lutar pelas conquistas de seus direitos. Ao longo da história, estabeleceram batalhas difíceis e inegavelmente complexas. Um divisor de águas nessa caminhada foi o direito a votar pela primeira vez em 1893 na Nova Zelândia. No Brasil, só puderam ir às urnas a partir de 1928. Enfrentando estruturas sociais estabelecidas a partir de uma visão patriarcal de poder, com suas normas, seus preconceitos e estereótipos, ficavam frequentemente à parte de reconhecimento e visibilidade pública no campo educacional, profissional e político. A conscientização e a mobilização das mulheres em busca de justiça social, de direitos igualitários, de novos papéis em diferentes esferas foram de fundamental importância no enfrentamento desses desafios. Hoje, até nos assustamos quando constatamos como elas eram vistas e tratadas no passado.

Como explicar, por exemplo, que o livro “Diário íntimo”, de Henri-Frédéric Amiel, que se notabilizou como uma das obras mais aplaudidas da história, possa se referir às mulheres de forma tão preconceituosa? Afirma o autor: “A mulher é uma passividade amante que recebe a ideia e a centelha e não se eletriza sozinha. Só a virilidade começa alguma coisa espontaneamente, é uma origem, um punctum saliem”. E em seguida, aprofundando ainda mais a análise crítica, acrescenta adjetivos contundentes: “Portanto o princípio feminino é subalterno, vem após e em segundo lugar. É o homem que de natureza é o senhor na arte, na legislação, na ciência, na indústria; a mulher é aluna, discípula, serva, imitadora. A cortesia cavalheiresca inutilmente o dissimula, não há igualdade entre os sexos. Indispensáveis um ao outro, um é condutor, o outro, conduzido. O carneiro é o senhor da ovelha; o contrário seria uma aberração e uma monstruosidade”.

Por que proponho, afinal, esta introdução ao texto?  O objetivo é levantar uma reflexão que se impõe nos dias atuais – a questão da censura e do revisionismo literário. Retomemos o exemplo de Amiel. Temos de considerar que os tempos eram outros. Ele produziu essas palavras em 1876. Uma época distante, que nada tem a ver com a realidade que vivemos hoje. Em vez de iniciar uma batalha revisionista para alterar um texto tão ofensivo, talvez seja mais indicado preservar o conteúdo como medida de comparação e, embora muitos obstáculos ainda devam ser vencidos, comemorar o caminho de conquistas percorrido até aqui. Não aceito a censura. O revisionismo literário, tentando moldar as obras do passado a uma realidade que se alterou nos últimos séculos, significa atacar um autor que não tem agora condições de fazer a sua defesa. Por isso, essa fúria revisionista nas obras de Monteiro Lobato, de Agatha Christie e tantos outros clássicos é censura com efeito retroativo.

Sou contra a censura revisionista e combato também a caneta vermelha nos textos atuais. Nunca me preocupei com os comentários agressivos dos leitores. Tenho comigo que, depois de publicado, o texto deixa de pertencer ao autor. Cabe a quem lê interpretá-lo de acordo com sua maneira de enxergar a vida. Não considero essa divergência de opiniões uma censura. Eu me refiro às barreiras que encontrei ao longo da minha carreira, pois fui vítima dos censores em alguns artigos que escrevi. Sempre tentei resistir. No início foi possível manter uma posição independente aqui e ali, mas no fim acabei por me dar conta de que havia me transformado no meu próprio censor. Quantas vezes, sem perceber, fiz autocensura para evitar aborrecimentos. Depois refazia, pois, se fosse para escrever me subordinando a essas regras impositivas, seria melhor não fazer.

Que discordem da minha maneira de pensar. Que critiquem os meus textos. Faz parte desse contrato tácito entre escritor e leitor. Não gostaria, entretanto, que os meus livros fossem reescritos no futuro para atender a um pensamento distinto prevalecente na época. A linha que separa a revisão crítica e a censura é muito delicada. A sujeição aos valores atuais da obra original, com suas marcas de um tempo e de uma sensibilidade próprias, pode representar o comprometimento de sua autenticidade e da liberdade artística do autor. Assim como não quero para mim, por coerência, também não aceito a censura que poderiam fazer à obra de Amiel. Que permaneça tal como é para entendermos e aprendermos com a história. Siga pelo Instagram: @polito