Antiguidades e relicários familiares contam histórias, carregam segredos e aguardam a possibilidade de construir novas memórias

Não sei se influenciada pela semana de Finados, ou pela lembrança da morte de meu pai, que curiosamente ocorreu no dia do aniversário do meu falecido tio Nicolas – que aparentemente veio buscá-lo –, fui tomada por um sentimento de nostalgia misturado com saudade, muita saudade. Na estante, lá no alto, encontrei o rádio de pilha “transistor super de luxe – 3 band, 2 speaker international” e mais um monte de outras coisas escritas, menos o registro da marca, que acabei herdando de meu pai durante o desmonte do seu escritório lá no Brás. É bonito. Prata, preto e antena longa, comprida, para captar as ondas do rádio que ao ser ligado 14 anos depois, por mim, curiosamente, estava sintonizado na rádio Jovem Pan, cujos programas de futebol ele ouvia atentamente até o último dia de sua vida. Gosto do design dos objetos. Sou um ser que acumula tralhas há anos, desde sempre. Não estou presa a um período específico. Distribuídos para todos os lados do meu lar, eles criam uma composição peculiar, para dizer o mínimo.

Outro dia pedi para consertar um móvel que pertencia à minha sogra. Ao entrar em casa, observo a expressão de espanto no rosto do velho marceneiro. Passados alguns segundos, vem a pergunta entrecortada pelo som rouco do cuco que, escondido entre quadros, anunciava a hora com erro de 20 minutos: “A senhora é comerciante de móveis antigos?”, questionou. “Não, meu senhor, é só uma casa repleta de memórias. Minhas e de todos aqueles que já foram seus possuidores”. O marceneiro foi embora com a mesma expressão da entrada, entendeu coisa nenhuma. Só levou a mesa de canto em madeira com patas de leão entalhada para polir. Nem conto o tanto de trabalho que estes detalhes todos me dão para tirar o pó, mas minha sogra gostava dela, cuidava bem de cada detalhe. Sinto-me reconfortada cuidando de algo que lhe pertenceu. Se é que existe algo depois que a gente vira nada, ela deve estar tentando entender o porquê de tanto zelo com uma coisa, um objeto. Sei lá. Não trato como relicário, só como lembrança.

Saio de casa. Sábado de uma manhã ensolarada. Imbuída da missão de escrutinar comportamentos sociais alheios, tenho este triste hábito, meus colegas de pesquisa bem o sabem. Me dirigi à Praça Benedito Calixto a pé. Acordei assim, sem explicação. Vontade de destrinchar segredos, ler a alma e os pensamentos das pessoas à volta em segredo. Na primeira barraca da Feira de Antiguidades deparo-me com várias fotos de época. Em uma delas, uma jovem vestida de noiva estampava um sorriso no rosto, esperançoso, aguardando uma nova fase da vida em que, imaginando-se dona de si, construiria seu lar e o de sua família. Largada sobre uma mesa, a imagem misturava-se às demais quinquilharias, retratando o momento feliz de alguém que desconheço. Quero crer que tenha tido uma vida boa como sonhara e que as fotos de sua realização pessoal e familiar venham a ter um destino melhor do que aquele que seus bisnetos lhe conferiram: abandono. Mais adiante, uma barraquinha repleta de carrinhos, naves espaciais, trens de lata, robôs, super-heróis, fortes-apache, e até uma inusitada caixa de papelão com a imagem do boneco Pedro de Lara, ao lado do boneco Falcon, aguardavam por um lar e pela possibilidade de construir novas e, por que não, agradáveis memórias futuras. “Descartados, os brinquedos carregam mágoas?” pensei.

“Oi, como vai o senhor, tudo bem? Tem alguma história para me contar sobre brinquedos magoados?” perguntei ao Senhor Milton (miltonalemao@ig.com.br), da feirinha de antiguidades. “Tenho”, responde ele de pronto, “várias”. “Sabe, tempos atrás, uma jovem trouxe aqui uma boneca feita de massa, corpo de pano rasgado, olhos fechados, cabelo desgrenhado, parecia castanho, sem nenhuma roupa. Dava para perceber que ela não gostava da boneca. Acho até que detestava. Queria vender de qualquer jeito. Era da bisavó dela. Aparentemente, tinha alguma desavença familiar entre as mulheres da família. Trocava por qualquer valor, tipo troco para cerveja. ‘Não compro bonecas’, eu disse a ela. Mas ela insistia tanto que paguei o valor da tal cerveja. Levei para casa. Decidi não colocar a venda. Dei banho, costurei o corpo de pano, penteei os cabelos que se mostraram lisos, cacheados, pareciam humanos de tão macios que ficaram. Pedi à vizinha que fizesse uma roupinha para não deixá-la assim, tão exposta, digamos. Há que se respeitar o recato, mesmo que de uma bonequinha do século XIX. Feito o vestidinho, o chapéu, lacinhos no cabelo, meia e sapatinhos, deixei sentadinha na estante da sala, dormindo tranquila de olhos bem fechados. Ao acordar no outro dia pela manhã, tomo o café, arrumo a casa e vou até a estante pegar minha carteira. E não é que ela estava de olhos bem abertos observando a casa? Eram azuis, de um azul muito vivo, lindo! Nem precisei consertar. Parecia ter encontrado o respeito, viu um novo lar”, contou Milton.

Outros tantos relatos preencheram minha manhã. Casos de objetos que passaram da condição de relicários familiares para antiguidades e velharias que, comercializáveis por ora, buscam novas serventias. Mosaico de tempos passados, tive o prazer de ouvir histórias únicas, longe dos livros de história, escrutinei pensamentos, comportamentos e li almas através das coisas que pertenciam a pessoas que sequer conheci, contadas pelas histórias de pessoas que sequer conheço no meio de uma feirinha de antiguidades de uma praça que semanalmente comercializa objetos em busca de uma nova oportunidade. Ao sair, levei lembranças, trouxe memórias de outros, agora minhas também e que compartilho com os leitores.