Brasil quer ser o ‘oásis verde’ dos data centers globais

Em um mundo onde o consumo energético dos data centers já supera o da aviação comercial, uma nação desponta como alternativa sustentável para a revolução digital: o Brasil. Com sua matriz energética 80% renovável e uma localização geográfica estratégica, o País se posiciona para capturar uma fatia significativa do mercado global de infraestrutura digital, estimado em trilhões de dólares.
A ambição não é pequena. O governo brasileiro quer transformar o País no “oásis verde” dos data centers globais, aproveitando um momento único onde a demanda por poder computacional explode com a inteligência artificial, mas a sustentabilidade se tornou critério obrigatório para investimentos corporativos.
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A vantagem brasileira: mais que energia limpa
“Do ponto de vista energético, o Brasil possui uma das matrizes mais limpas do mundo”, explica Higor Turcheto, gerente de Mitigação da WayCarbon. “Pode ser um diferencial estratégico para as operações desse setor em nosso País.”
Mas a vantagem vai além da energia. Márcio Aguiar, diretor da divisão Enterprise da Nvidia, destaca outros atrativos: “Nós estamos totalmente cabeados para todos os continentes. Falta só um projeto pelas cordilheiras dos Andes para conectar com o Pacífico. É uma mega oportunidade.”
O timing não poderia ser melhor. A corrida da inteligência artificial está gerando uma demanda explosiva: globalmente, data centers consumiram 460 TWh em 2022 e podem dobrar até 2026. No Brasil, a capacidade atual é de 815 MW, com previsão de mais 220 MW já em 2025. Com projetos engatilhados, a demanda pode chegar a 2,5 GW até 2037.
Cada data center de IA moderno requer entre 150 MW e 500 MW comparável ao consumo de uma cidade média. “Energia limpa virou atrativo real; multinacionais antes processavam tudo fora”, confirma um executivo da Nvidia.
O executivo da Nvidia revela que grandes empresas já estão se movimentando: “Hoje você tem 15 bancos brasileiros visitando nossa matriz em Santa Clara. Algo que não tínhamos antes.” O interesse não se limita ao setor financeiro. Energia, óleo e gás, e telecomunicações lideram a demanda por soluções de IA no País.
O timing perfeito: Trump, impostos e oportunidades
A política protecionista americana acabou criando uma janela de oportunidade para o Brasil. “O governo brasileiro está buscando oferecer melhores condições no acesso às soluções que compõem data centers”, conta Aguiar, que esteve recentemente com o ministro Fernando Haddad em discussões sobre redução de impostos para GPUs e componentes de data centers.
A reforma tributária aprovada pelo Congresso já prevê incentivos específicos para o setor. É um movimento estratégico: enquanto os Estados Unidos restringem, o Brasil facilita o acesso à tecnologia de ponta.
O gargalo federativo: estados como peça-chave
Mas há um problema na engenharia tributária brasileira que pode comprometer toda a estratégia. Paulo Cunha, diretor de políticas públicas da AWS Brasil, foi direto ao ponto: “A gente precisa de isenções no nível estadual também. Só com os benefícios federais ajuda, claro, mas não é suficiente.”
O executivo da gigante de cloud computing aponta para o calcanhar de Aquiles da política nacional: o pacto federativo. “Se não houver clareza sobre os tributos ao longo de 10 anos, você não fecha o plano de negócios”, explica Cunha. E data centers não são investimentos de curto prazo – o horizonte típico é de 10 a 15 anos.
O maior desafio agora é político: convencer 26 estados e o Distrito Federal a abrirem mão de receita tributária em nome de uma visão estratégica nacional. A uniformização do ICMS é essencial, mas cada estado tem suas prioridades fiscais e pressões orçamentárias.
“O desafio é federativo”, resume Cunha. “Esperamos que os estados acompanhem essa diretriz. Isso seria benéfico para o setor e para o País.” A frase diplomática esconde uma realidade dura: sem coordenação entre todos os entes federativos, a política pode nascer morta.
Desafios de infraestrutura: nordeste rico, mas isolado
Além dos desafios tributários, há questões estruturais que podem comprometer o sonho brasileiro. Os números do licenciamento revelam a dimensão do problema: foram emitidas apenas 18 portarias para conexão de data centers em 2024, contra seis em 2022. Segundo fontes do setor, 55 processos estão em análise com previsão até 2037, e mais 12 aguardando tramitação.
O Nordeste exemplifica outro paradoxo brasileiro. A região tem potencial renovável gigantesco – 16 GW de pico – mas fica isolada por linhas de transmissão saturadas. Estados como o Ceará possuem 14 cabos submarinos conectando o mundo, mas faltam rotas internas robustas para escoar energia e conectar data centers à rede nacional.
O advento da IA intensifica ainda mais a pressão por transmissão moderna. Os leilões de HVDC (corrente contínua de alta tensão) mostram avanços, mas ainda são insuficientes para a demanda projetada. É como ter um aeroporto internacional sem estradas para chegar até ele.
O dilema da sustentabilidade real
Mas nem tudo são flores neste cenário de sustentabilidade aparentemente perfeito. A questão que não quer calar: será que energia limpa é suficiente para garantir sustentabilidade real?
“O uso exclusivo de energia renovável é importante, mas a sustentabilidade corporativa exige uma abordagem abrangente”, alerta Turcheto. “Deve considerar todas as dimensões de impacto: ambiental, social e de governança.”
O risco de greenwashing é real. Data centers consomem água para refrigeração, geram resíduos eletrônicos e podem impactar comunidades locais. “Sistemas de maior eficiência e uso de gases refrigerantes com menor potencial de aquecimento global promovem redução de emissão”, pontua o especialista da WayCarbon.
Da infraestrutura à inovação: o ecossistema completo da IA
Mas data centers são apenas o primeiro degrau de uma escada muito maior. Para que o Brasil se torne verdadeiramente relevante na economia digital, não basta ter a infraestrutura – é preciso construir um ecossistema completo de inovação em inteligência artificial.
A energia limpa que torna nossos data centers atrativos é a mesma que pode alimentar laboratórios de pesquisa, startups de IA e centros de desenvolvimento tecnológico. É a base que sustenta desde o treinamento de modelos de machine learning até a operação de fábricas automatizadas e cidades inteligentes.
“A energia é o combustível de toda a revolução da IA”, explica o executivo da Nvidia. “Sem energia abundante e sustentável, você não treina modelos avançados, não processa dados em tempo real, não automatiza processos industriais. O País que resolver a equação energética da IA sai na frente.”
É neste contexto mais amplo que os desafios brasileiros se tornam ainda mais complexos. Porque para liderar na era da inteligência artificial, energia limpa é condição necessária, mas não suficiente.
A corrida dos talentos
Por isso, por trás dos números bilionários e das promessas governamentais, existe um gargalo menos visível, mas igualmente crítico: pessoas qualificadas.
“Nosso maior desafio é a falta de pessoas qualificadas para realmente tirarem proveito de todas as ferramentas que desenvolvemos”, admite Aguiar. “Ainda estamos operando com apenas 20 a 25% do potencial que temos a oferecer.”
É um paradoxo brasileiro: temos a infraestrutura energética, a localização estratégica e agora os incentivos fiscais, mas nos falta o capital humano especializado. “Não é obrigação do governo fazer investimento, mas facilitar o acesso a essas tecnologias”, pontua o executivo da Nvidia.
Um vislumbre do futuro
“Estamos saindo da era do chatbot burro para a era do chatbot mais inteligente”, brinca Aguiar. “Mas ainda estamos falando de uma criança de dois anos. Quanto tempo uma criança demora para começar a perguntar ‘por quê’? Uns cinco anos.”
A comparação é pertinente. Se a IA generativa tem apenas dois anos, estamos no início de uma revolução que vai durar décadas. E o Brasil tem uma janela histórica para se posicionar como protagonista global.
Oportunidade real ou miragem?
A Política Nacional de Data Centers não é apenas sobre atração de investimentos – é sobre posicionamento geopolítico na economia digital. “O jogo pode virar”, resume Aguiar. “Vai ser uma grande oportunidade.”
Mas para que vire realidade, uma série complexa de desafios precisa ser endereçada simultaneamente: acelerar a formação de talentos especializados, desenvolver marcos regulatórios claros para sustentabilidade, garantir que os incentivos fiscais se traduzam em compromissos ambientais reais, conseguir que os 27 entes federativos brasileiros remem na mesma direção, agilizar processos de licenciamento que hoje levam mais de uma década, e modernizar a infraestrutura de transmissão para conectar as regiões com maior potencial renovável.
A AWS já sinalizou que a previsibilidade tributária não é negociável. Sem ela, e sem resolver os gargalos de transmissão que mantém o Nordeste isolado apesar de seu potencial energético, o “oásis verde” pode virar apenas mais uma promessa perdida na complexidade burocrática brasileira.