Diário do correspondente: as ruas milenares de Damasco

Poucas cidades no mundo, sobretudo em nosso continente podem olhar milênios para trás. A história escrita na América do Sul é tão recente que não chega a cobrir um décimo dos anos de algumas cidades no Oriente Médio. Damasco é considerada por muitos historiadores a mais antiga capital continuamente habitada do mundo e exatamente por isso que suas ruas estreitas e chãos de pedra guardam resquícios de múltiplos impérios.
Visitar uma cidade de mais de 5 mil anos de história é confrontar as suas diferentes influências em cada um dos seus bairros e em cada camada de terra que marcou o início ou o fim de muitas civilizações. A capital síria se mostrou uma localidade mais calma no mundo árabe se comparada com outras capitais que já pude visitar enquanto correspondente. A caoticidade de Bagdá, os ruídos intermináveis do Cairo ou a grande tensão no ambiente de Jerusalém não se fazem presentes pelas ruas de Damasco. Os sons eram mundanos, mas permeados de tranquilidade.
Durante a recente guerra civil, Damasco foi palco de muitos dos protestos iniciais contra a ditadura Assad, mas em sua parte central não foi tão duramente atingida ou devastada pela guerra como as também milenares Alepo ou Palmira. A população damascena viveu os dramas da guerra através de outras nuances. A falta constante de energia e água, o desemprego em massa, a desvalorização frequente da lira síria. Conversando com os locais, logo nos meus primeiros dias no país, pude ver que mesmo sendo pouco atingidos pelas bombas, cada um carregava uma história da guerra de diversos rincões da Síria, que de uma forma ou de outra, se cruzavam nos bazares de Damasco.
A grande mesquita do Omíada, erguida no terreno de uma basílica no século VII, após invasão islâmica do Levante, também reproduz a essência damascena. Ao contrário das estruturas circulares, com altas cúpulas e cristais opulentes, a quarta mesquita mais importante para os sunitas é mais suntuosa no lado de fora, com um átrio central imenso de mármore, onde os comerciantes das caravanas se encontram há séculos. O sorriso sincero dos sírios ao constatar que o país voltou a receber visitantes estrangeiros, inclusive da América Latina, mostrou o semblante aliviado de um povo que agora vislumbra uma realidade um pouco mais esperançosa.
Menos de 1 km de distância da mesquita, temos o bairro cristão, por onde andou o apóstolo Paulo no século I, enquanto a perseguição ao cristianismo primitivo estava ganhando forma. As igrejas armênias, siríacas católicas, siríacas ortodoxas, grego-ortodoxas e católicas romanas apenas complementam a ampla variedade religiosa que sempre fez parte do Levante e que se sentiu ameaçada em sua essência, durante o auge do terror jihadista do Estado Islâmico há menos de uma década. A cada esquina virada e cena cotidiana observada, uma nova faceta da Síria era apresentada para mim.
Visitar capitais muitas vezes é conhecer a realidade maquiada de uma nação, já que no centro do poder político as amenidades oferecidas àquela população tendem a ser melhores que a dos demais centros urbanos e áreas rurais do país. No caso sírio, Damasco foi uma bela vitrine de uma vida plural. Um pequeno frasco de alguns milhares de anos que traz as imperfeições de traumas históricos, mas os aromas da diversidade cultural apenas encontrada por aqui de forma tão genuína.