Diário do correspondente: minha chegada à Síria pós-guerra

Desde 2011 a Síria se tornou uma das nações mais violentas do mundo. Após a Primavera Árabe colocar milhões nas ruas contra governos ditatoriais no Norte da África e Oriente Médio, guerras civis eclodiram por toda a região. A ditadura da família Assad estava prestes a completar 40 anos, quando manifestantes pacíficos se transformaram em rebeldes armados e o estado falimentar da economia síria abriu espaço para que seus rincões se tornassem um campo de batalha de grandes potências e grupos terroristas.

Para quem gosta de geopolítica e acompanha diariamente os noticiários, os bombardeios de Alepo, as execuções monstruosas do Estado Islâmico e a crise dos refugiados sírios na Europa se tornaram imagens do dia a dia da década de 2010. Essa dura realidade constatada através da televisão sempre instigou a minha curiosidade jornalística em cobrir os acontecimentos em zonas de conflito. Poder contar a história daqueles sem voz e dar um rosto àqueles tratados meramente como números pelas manchetes é o chamado dos correspondentes de guerra. Desde 2020 pude cobrir 3 regiões em conflito, mas a Síria sempre se mantinha como um local especial por ser a tragédia humanitária deste século que mais acompanhei enquanto espectador, antes mesmo de adentrar a profissão.

Os últimos dias de 2024 foram surpreendentes para todos que imaginavam que Bashar al-Assad tinha conseguido assegurar seu controle nos grandes centros urbanos na Síria. De fato, o antigo ditador tinha o domínio territorial de Damasco, Homs, Alepo e Latakia, mas os pilares sustentadores de seu exército começaram a ruir em Moscou e Beirute. O apoio aéreo da Rússia foi fundamental para a retomada de muitas cidades por parte do governo sírio durante os anos de 2014 em diante.

 

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Da mesma forma, a aliança de Assad com o Hezbollah, lhe garantiam superioridade estratégica e numérica em muitas regiões do país frente aos diversos braços armados rebeldes. Os enormes gastos ao Kremlin para combater na Ucrânia tornaram a Síria, outrora prioritária na política externa russa, um gasto incompatível de se manter em tempos de guerra. Similarmente, os fundamentalistas libaneses do Hezbollah em seu mais recente conflito com Israel, perderam não apenas suas principais lideranças, mas parte substantiva de seu aparato militar.

Assad sem uma retaguarda robusta estava mais fraco do que nunca. Fortemente ajudados pela Turquia, os também fundamentalistas do grupo HTS (Hay’at Tahrir al-Sham) iniciaram uma ofensiva surpresa a partir de Idlib, conquistando Alepo, dominando a principal rodovia norte-sul até Hama e logo em seguida chegando à Damasco. A resistência das forças de Assad foi igualmente proporcional à bravura do antigo ditador, que em poucas horas já estava foragido na Rússia. Inicialmente a liderança de um grupo radical islâmico gerou grande desconforto à comunidade internacional, que rechaçava Bashar al-Assad, mas temia mais um governo teocrático islâmico aos moldes do Irã ou até mesmo Afeganistão.

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O antigo terrorista Mohammad al-Julani, abandonou on nome de guerra e os trajes militares, vestiu terno e gravata e se reapresentou ao mundo como Ahmed al-Sharaa, o presidente interino de uma Síria em transição. Sua tentativa em conversar com antigos desafetos da Síria, incluindo os Estados Unidos, mostrou boa fé inicial, mas considerando a enorme instabilidade de todas as nações do Oriente Médio, talvez seja cedo demais para se ter certeza de suas intenções.

A queda repentina na Síria veio acompanhada com grande mudanças. Antigamente visitar o país não era tão simples para um turista convencional, mas particularmente complexo para um jornalista ou correspondente internacional. A infalibilidade de Assad proposta por suas forças militares transformava o trabalho de qualquer membro da imprensa ocidental em uma tarefa homérica em tempos de guerra civil. Por muito tempo, exatamente por essas razões, o antigo sonho de andar pelo país adormeceu. Contudo, em mais uma manobra inesperada, mas consequente com a busca por mostrar moderação, o novo governo interino, aboliu a necessidade de vistos para dezenas de nações, incluindo para os cidadãos brasileiros. 

A cobertura em zonas de conflito é feita de janelas de oportunidades. Quando uma região marcada por violência e guerra civil passa por inesperado processo de pacificação, a janela se abre e os curiosos não podem perder a chance. Exatamente isso que fiz, empunhando nosso microfone vermelho e azul e atravessando a fronteira terrestre entre Jordânia e Síria após 13 anos de guerra.

Enquanto as novas bandeiras verdes, brancas e pretas com três estrelas vermelhas já dão as boas-vindas aos visitantes, o posto de controle fronteiriço apenas corrobora que um governo de transição recém empossado está em Damasco. Homens não uniformizados, com calças jeans, camisetas e bonés fazem o controle dos passaportes de maneira improvisada, mas com boa vontade. Eu trajava a mesma idumentária e poderia facilmente ser confundido com um deles. Sem muitas perguntas, sem grandes tramites burocráticos recebi o carimbo no meu passaporte e entrei em um dos países mais antigos do mundo, mas conhecido pelas piores razões nos anos recentes.

No horizonte a aridez típica da região se misturava com a alegria dos passageiros do ônibus, muitos dos quais eram sírios e que voltavam pela primeira vez à sua terra natal em praticamente uma década. A incerteza é evidente nas projeções de todos os analistas, mas o otimismo dos locais é fácil de se observar. A chegada foi mais simples do que o esperado, mas foi apenas o início de uma jornada pela história milenar e traumática de uma nação tão fascinante.