Estacionamentos sob o Minhocão: quando o ‘bonito’ não é belo

A população da cidade de São Paulo convive com um déficit habitacional crônico enquanto milhares de novas unidades encontram-se vazias à espera de compradores enquanto a especulação imobiliária corre solta, ciclistas disputam espaço com veículos particulares e são atropelados diariamente, pessoas caem em buracos nas calçadas (para quem tem uma calçada para caminhar), a qualidade do ar deteriora-se junto com o tempo médio no trânsito, pessoas moram nas ruas aos milhares e a recente decisão da prefeitura de transformar as áreas sob o Minhocão em estacionamentos é objeto de opinião, no mínimo, estranho, merecendo uma reflexão cuidadosa daqueles que pagam seus impostos.

Em viagem à Ásia, o prefeito Ricardo Nunes compartilhou entusiasticamente vídeos de viadutos verdejantes asiáticos, declarando que iria “deixar mais bonito e funcional” o Elevado João Goulart. A ironia reveladora deste episódio exemplifica o fenômeno que podemos chamar de “aculturamento” dos gestores públicos brasileiros — o deslumbramento superficial com soluções estrangeiras que leva à importação acrítica de modelos urbanos descontextualizados. Enquanto se maravilhava com estruturas verdes em Tóquio ou Shanghai, sua administração implementava em São Paulo exatamente o oposto: mais asfalto, mais carros, menos espaço para mobilidade sustentável. 

Este “urbanismo de fachada” absorve apenas a camada estética de intervenções que, em seus contextos originais, integram sistemas de mobilidade planejados e políticas amplas de desenvolvimento urbano e que resultam em projetos que imitam formas sem compreender funções, agravando desigualdades ao invés de mitigá-las. No caso do Minhocão, a contradição é ainda mais grave, pois a inspiração visual em jardins suspensos asiáticos transforma-se em estacionamentos que priorizam automóveis e reduzem espaços para mobilidade sustentável. E quanto aos moradores que habitavam sob o viaduto? Desintegraram-se ou foram simplesmente deslocados para invisibilizar o problema?

O espaço urbano é um recurso precioso e finito, portanto, destiná-lo, a estacionamentos em uma região central já saturada de veículos representa uma escolha política clara que privilegia o automóvel individual em detrimento das pessoas. Esta escolha ocorre em flagrante contradição com os próprios compromissos da cidade com a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O ODS 11 estabelece claramente a meta de criar “cidades e comunidades sustentáveis”, o que implica priorizar transporte coletivo e mobilidade ativa, precisamente o oposto do que está sendo implementado.

Especialistas consultados pela imprensa destacam a ausência completa de debate com a sociedade, enquanto, paradoxalmente, a prefeitura implementa a intervenção com uma rapidez espantosa que destoa da habitual morosidade institucional. Invocando o conceito de “intervenção temporária”, numa apropriação distorcida do “urbanismo tático” ou “pop-up” que originalmente nasce de iniciativas cidadãs — a gestão municipal utiliza recursos públicos para um projeto que carece de legitimidade democrática. Uma cidade verdadeiramente inteligente não é aquela que apenas moderniza infraestrutura, mas a que possibilita que seus habitantes participem ativamente das decisões sobre o espaço compartilhado. Sem esta dimensão participativa, mesmo intervenções tecnicamente competentes falham em responder às necessidades reais da população.

O projeto do Minhocão exemplifica o que podemos chamar de “maquiagem urbana” — intervenções que alteram a aparência sem resolver problemas estruturais e, em alguns casos, agravando-os. A substituição de pessoas marginalizadas por veículos metalizados não “limpa” a cidade, mas apenas desloca e invisibiliza problemas sociais urgentes. Como apresentado em várias matérias sobre o tema, o “lixo” sumiu de lá. Difícil deixar de pensar nos cidadãos que encontraram nas ruas, um lugar para morar. A quem chamam de lixo?

Uma intervenção urbana eticamente bela exigiria um olhar integrado sobre os desafios da região. Quantas unidades habitacionais poderiam ser criadas com o investimento destinado a estas obras? Quais espaços públicos de convivência, cultura ou educação poderiam ser implementados? Como a mobilidade ativa poderia ser genuinamente priorizada? O verdadeiro custo da intervenção não se encontra apenas nos recursos financeiros empregados, mas na oportunidade desperdiçada de repensar radicalmente o uso deste espaço que se encontra degradado na cidade desde a construção do viaduto.

Em vez de estacionamentos à sombra do viaduto, poderíamos imaginar centros de acolhimento humanizado, inclusão de mobiliários urbanos e melhoria das travessias além de iluminação e retomada de concursos de arte urbana, por exemplo, com intervenções que não apenas parecem belas, mas que manifestam beleza ética ao transformar positivamente a cidade. Tudo isso acompanhado de mecanismos de assistência social, renda, habitação e saúde daqueles que ali se instalaram. Mas como desejar uma mudança se nem sequer a zeladoria urbana funciona adequadamente?

A beleza urbana, senhor prefeito e demais gestores e técnicos, no século XXI não pode ser reduzida a critérios estéticos convencionais ou funcionalistas estreitos. Uma cidade verdadeiramente bela é aquela que cuida das pessoas, do ambiente, da memória coletiva; que inclui diversidade de corpos, necessidades e modos de vida; e que permanece sustentável e resiliente diante dos desafios climáticos e sociais.

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Um gestor público culturalmente sensível e com alguma visão de futuro urbano compreenderia que a beleza urbana em São Paulo não pode ser alcançada com as mesmas estratégias (embora adequadas aos países) de outros países. A verdadeira inovação urbana não está em copiar a aparência de soluções externas, mas em desenvolver, colaborativamente com a população local, intervenções que respondam às especificidades de nosso território, clima, cultura e dinâmicas sociais.

O caso do Minhocão nos convida a refletir sobre qual cidade estamos construindo e para quem. Enquanto continuarmos confundindo embelezamento superficial com transformação urbana significativa, e enquanto nossos gestores seguirem “aculturados” por modelos externos desconectados de nossa realidade, seguiremos produzindo espaços que podem até parecer “bonitos” em fotografias oficiais, mas que falham em manifestar verdadeira beleza que é aquela que nasce do cuidado genuíno com as pessoas e o planeta.