‘Me vendo no TikTok’: app lucra com conteúdo sexual feito por adolescentes, diz denúncia feita à BBC

Jovens mulheres contam que vendem conteúdo sexual pela plataforma — que fica com 70% dos pagamentos enviados pelos espectadores, segundo investigação da BBC. —
BBC
Atenção: esta reportagem contém descrições de caráter sexual
O aplicativo TikTok está lucrando com transmissões ao vivo (lives) com conteúdo sexual feito por adolescentes — algumas com 15 anos —, conforme uma denúncia feita à BBC.
A reportagem conversou com três mulheres no Quênia que disseram ter começado a prática quando eram adolescentes. Elas afirmam que usam o TikTok para anunciar abertamente e negociar o pagamento por conteúdo mais explícito enviado por outras plataformas.
O app fica com cerca de 70% de todos os pagamentos feitos durante transmissões ao vivo, segundo apuração feita pela BBC em 2022 e reconfirmada recentemente.
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As regras do TikTok proíbem a prostituição, mas moderadores de conteúdo afirmaram à BBC que a empresa sabe que o aplicativo é usado para isso.
À BBC, a plataforma declarou ter uma política de “tolerância zero para exploração sexual”.
Transmissões ao vivo do Quênia são populares no TikTok — durante uma semana, a BBC encontrou até uma dúzia de lives todas as noites com mulheres dançando sugestivamente e sendo observadas por centenas de pessoas ao redor do mundo.
Uma captura de tela desfocada de uma transmissão ao vivo do TikTok: algumas dançarinas (à direita) se revezam para dançar sugestivamente na tela principal (à esquerda)
BBC
Gírias e presentes
São duas da manhã em Nairóbi, capital do Quênia, e as lives do TikTok estão a todo vapor.
A música toca alto, e os usuários conversam uns com os outros, enquanto uma mulher liga sua câmera para rebolar ou posar provocativamente. Emojis de presentes (pagamentos) preenchem a tela.
“Mande uma mensagem para mim no privado para ver meu clitóris”, dizem as dançarinas repetidamente.
No privado, os espectadores podem mandar solicitações mais explícitas — como assistir à mulher se masturbando, se despindo ou realizando atividades sexuais com outras mulheres.
Em algumas das transmissões encontradas pela BBC, gírias sexuais codificadas foram usadas para anunciar serviços sexuais.
Os emojis de presente (rosas, corações e outros símbolos) funcionam como pagamento para as transmissões ao vivo do TikTok — os usuários pagam para mandar e o criador pode convertê-los em dinherio.
Os presentes também pagam por conteúdo sexual enviado posteriormente por outras plataformas — já que o TikTok remove nudez explícita e quaisquer atos sexuais óbvios.
“Não é do interesse do TikTok reprimir a solicitação de sexo — quanto mais pessoas dão presentes em uma transmissão ao vivo… [mais] receita para o TikTok”, diz João*, um ex-moderador de conteúdo queniano que pediu para não ter seu nome verdadeiro divulgado.
João é um dos 40 mil moderadores que o TikTok diz empregar globalmente.
Pagamentos no Tik Tok são feitos com emojis que podem ser convertidos em dinheiro
BBC
70% para o Tik Tok
A BBC descobriu que o TikTok fica com 70% do valor dos presentes enviados em transmissões ao vivo. A empresa negou que fosse o percentual de comissão depois de uma investigação em 2022 feita pela BBC, mas a reportagem verificou que a porcentagem segue vigente.
O TikTok está ciente há muito tempo da exploração de crianças e adolescentes em suas transmissões ao vivo, tendo conduzido sua própria investigação interna em 2022, de acordo com denúncias feitas em um processo movido pelo Estado americano de Utah.
A empresa teria ignorado o problema porque “lucrou significativamente” com a exploração, diz a acusação.
O TikTok diz que a ação do Utah, que está em andamento na Justiça dos EUA, ignorou as “medidas proativas” que a empresa havia tomado para melhorar a segurança da plataforma.
O Quênia é um país onde esse tipo de abuso é crítico, diz a organização não-governamental ChildFund Kenya. O problema é agravado no país pela composição da população, cheia de jovens, e pelo uso generalizado da internet.
O continente africano como um todo também tem moderação online ruim em comparação com países da Europa e da América, acrescenta a instituição.
Funcionários de uma empresa que fornece moderação de conteúdo ao TikTok falaram à BBC sobre o problema
BBC
João, que trabalhou para a Teleperformance — empresa contratada pelo TikTok para fornecer moderação de conteúdo — diz que os moderadores recebem um guia de referência de palavras ou atos sexuais proibidos.
Mas esse guia é restritivo, diz João, e não leva em consideração gírias ou outros gestos provocativos.
“Você pode ver pela maneira como elas estão posando, com a câmera em seus decotes e coxas [por exemplo], que elas estão oferecendo sexo. Elas podem não dizer nada, mas você pode ver que estão sinalizando para suas contas [de outra plataforma]. No entanto não há nada que eu possa fazer.”
Kelvin*, outro moderador de conteúdo da Teleperformance que também pediu para não ter o nome verdadeiro divulgado, diz que a moderação também é limitada pela crescente dependência do TikTok em inteligência artificial (IA), que ele diz não ser sensível o suficiente para captar gírias sexuais locais.
João e Kelvin estão entre os sete moderadores ou ex-moderadores de conteúdo que trabalham com conteúdo do TikTok que conversaram com a BBC.
João diz que cerca de 80% das transmissões ao vivo sinalizadas nos feeds dos moderadores de conteúdo eram sexuais ou anunciavam serviços sexuais, e o TikTok está ciente da dimensão do problema.
Cafetões digitais
A ChildFund Kenya e outras instituições disseram à BBC que crianças de até 9 anos estão sendo prostituídas na plataforma.
A BBC conversou com adolescentes e mulheres jovens que dizem que estão passando até seis ou sete horas por noite na atividade e ganhando em média 30 libras (R$ 225) por dia — o suficiente para comprar comida e pagar por transporte durante uma semana.
“Eu me vendo no TikTok. Eu danço nua. Faço isso porque é onde consigo ganhar dinheiro para me sustentar”, diz Esther*, uma jovem de 17 anos. Ela mora em um bairro pobre de Nairóbi, onde 3 mil moradores compartilham banheiros coletivos.
Ela diz que o dinheiro a ajuda a comprar comida para seu filho e a sustentar sua mãe, que tem tido dificuldade para pagar o aluguel desde que o pai de Esther morreu.
Esther diz que tinha 15 anos quando foi apresentada às transmissões ao vivo do TikTok por uma amiga, que a ajudou a contornar as restrições de idade — apenas maiores de 18 anos podem fazer lives.
Os usuários também precisam de pelo menos mil seguidores para fazer uma transmissão ao vivo. Essa regra faz com que usuários do TikTok com muitos seguidores possam agir como “cafetões digitais”, hospedando transmissões ao vivo vendendo conteúdo sexual.
Alguns deles têm contas de backup, indicando que foram banidos ou suspensos pela plataforma no passado.
Eles parecem saber como evitar a detecção pelos moderadores de conteúdo, sendo provocativos o suficiente para despertar o interesse dos clientes durante as transmissões.
“Quando estiver dançando, afaste-se da câmera, caso contrário, você será bloqueada”, grita um cafetão para uma mulher que rebola na tela.
Em troca de serem hospedadas, as mulheres cedem aos cafetões uma parte de seus ganhos.
O relacionamento pode rapidamente levar à exploração, diz Esther. Ela diz que seu cafetão digital sabia que ela tinha menos de 18 anos e “gostava de usar garotas jovens”.
Ele a pressionou para ganhar mais — o que significa que ela precisava fazer transmissões ao vivo com mais frequência — e levou uma parte maior de seus ganhos do que ela esperava, diz a jovem.
Segundo Esther, trabalhar para ele era como estar “algemada”.
“Você é quem está sofrendo porque ele fica com a maior parte e, no entanto, é você quem está sendo usada.”
Sophie* diz que também tinha 15 anos quando começou a fazer transmissões ao vivo no TikTok. Ela conta que recebeu solicitações de homens na Europa para serviços em outras plataformas, incluindo um usuário alemão que exigia que ela acariciasse seus seios e genitais por dinheiro.
Agora com 18 anos, ela se arrepende de seu trabalho sexual online.
Alguns dos vídeos que ela enviou aos usuários por meio de outras plataformas foram carregados nas redes sociais sem seu consentimento, ela diz.
Seus vizinhos descobriram e alertaram outros jovens para não se associarem a ela, conta Sophie.
“Eles me rotulam como uma ovelha perdida, e dizem aos jovens que eu os enganarei. Fico sozinha na maior parte do tempo.”
Algumas das meninas e mulheres que conversaram com a reportagem disseram que também foram pagas para conhecer usuários do TikTok para sexo pessoalmente ou foram pressionadas a fazer sexo com seus cafetões.
O TikTok tem investido para se estabelecer em países do continente africano, mas não está empregando funcionários suficientes para monitorar o conteúdo de forma eficaz, disseram os moderadores de conteúdo no Quênia.
O governo do Quênia sinalizou reconhecer o problema — em 2023, o presidente William Ruto se reuniu com o CEO do TikTok, Shou Zi Chew, para pedir uma melhor moderação de conteúdo na plataforma.
O governo diz que a empresa concordou com uma regulamentação mais rígida, com um escritório do TikTok no Quênia para ajudar a coordenar as operações.
Mas os moderadores disseram que, mais de 18 meses depois, nenhuma das duas coisas aconteceu.
A Teleperformance respondeu a um pedido de comentário da BBC dizendo que seus moderadores “trabalham diligentemente para marcar e sinalizar conteúdo gerado pelo usuário com base nos padrões da comunidade e diretrizes do cliente”.
A empresa afirma também que os sistemas de seus clientes não estão configurados para permitir que a Teleperformance remova material ofensivo ou o denuncie às autoridades policiais.
Um porta-voz do TikTok disse à BBC que o “TikTok tem tolerância zero para exploração sexual”.
“Aplicamos políticas de segurança rígidas, incluindo regras robustas de conteúdo ao vivo, moderação em 70 idiomas, incluindo suaíli (língua oficial do Quênia)”, disse a empresa.
“Fazemos parcerias com especialistas e criadores locais, incluindo nosso Conselho Consultivo de Segurança da África Subsaariana, para fortalecer continuamente nossa abordagem.”
*Os nomes foram alterados para proteger a identidade dos entrevistados
Peça ‘Prima Facie’ aborda questões de justiça e violência sexual