Minha gaveta quebrada e a conspiração da longevidade limitada

Outro dia, a gaveta do meu guarda-roupa quebrou. Sabe aquela gaveta de madeira compensada, fininha, que já veio meio bamba quando comprei meu apê? Pois é, ela não aguentou mais o peso das minhas camisetas e desabou. Suspirei, frustrada. Fazia tempo que ela ameaçava ceder, mas eu sempre adiava o conserto. Agora, ali estava eu, com uma gaveta quebrada na minha frente e um dilema: consertar ou substituir? Encontrar alguém para consertar? Sem chance. Os prestadores de serviços nem atendem esses chamados. Da última vez que algo parecido aconteceu, entregaram-me um cartão informando que o melhor a fazer era substituir o armário todo por algo mais moderno, colorido, cheio de espelhos e vidros, como se o restante, antigo que é, não tivesse mais valor algum. E daí se tem 40 anos e veio junto com meu apê?

O mesmo aconteceu com meu smartphone, o notebook, a impressora e só não aconteceu com a cafeteira porque ainda utilizo o velho e bom coador de café com a chaleira antigona da minha tia para aquecer a água. Não troco por nada. Os demais produtos que citei não recebiam mais atualizações de software e estavam cada vez mais lentos. Provavelmente o mesmo acontece com os leitores. Vivemos em uma sociedade de consumo acelerado, onde a troca constante de produtos se tornou a norma. Mas por que nossos aparelhos eletrônicos, roupas e eletrodomésticos parecem ter uma vida útil cada vez menor?

O nome deste envelhecimento precoce é “obsolescência programada”. Trata-se de estratégia adotada por muitos fabricantes para reduzir a vida útil dos produtos, forçando a substituição prematura e alimentando um ciclo vicioso de consumo e descarte. Querem apenas vender mais e mais rápido. Essa prática, que se manifesta em smartphones que se tornam lentos após atualizações, baterias impossíveis de trocar e eletrodomésticos com componentes que falham precocemente, impacta o bolso do consumidor, o meio ambiente e o clima.

O “envelhecimento forçado” pode ser funcional ou até perceptivo, afetando a forma como percebemos produtos ou ideias, levando-nos a considerá-los fora de moda ou ultrapassados, mesmo que estejam em perfeitas condições. Isso nos impulsiona a substituir itens que ainda são funcionais, muitas vezes por razões estéticas ou culturais, reforçando um ciclo de consumo que pode ser questionável do ponto de vista da sustentabilidade e da eficiência. Só para se ter uma ideia, a cada ano, mais de dois bilhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos (RSU) são gerados em todo o mundo. Se fossem embalados em contêineres de transporte padrão e enfileirados, esses resíduos dariam a volta da Terra 25 vezes! 

Mas o problema se agrava com a exploração de recursos naturais cada vez mais escassos para a produção desenfreada de novos produtos. Além disso, a fabricação e o transporte geram emissões de carbono que intensificam o aquecimento global e as mudanças climáticas. As chuvas que mataram 18 pessoas nos últimos dias em São Paulo ocorreram por deslizamentos, vendavais, enxurradas e, novamente, por afogamento dentro de um carro graças aos efeitos causados pelos extremos climáticos resultantes do aquecimento global. Diante dessa realidade, me pergunto: será que vale a pena continuar nesse ciclo de consumo desenfreado? Será que não podemos ter produtos mais duráveis, que possam ser consertados e que durem mais tempo?

Felizmente, existem alternativas que buscam responsabilizar os fabricantes pela gestão do fim de vida dos produtos, incentivando o design sustentável e a reciclagem. Não é possível que apenas o consumidor e o poder público sejam responsabilizados por todo o processo de reinserção de embalagens e demais produtos na cadeia produtiva. O cuidado com embalagens, eletrônicos, roupas, componentes eletrônicos e outros itens não pode recair apenas sobre indivíduos e governos. O papel das empresas e indústrias é fundamental nesse processo, afinal, são elas que colocam esses produtos no mercado. A colaboração entre todos os setores — governo, indústria e sociedade — é essencial para construir um modelo de consumo mais consciente e sustentável, reduzindo o impacto ambiental e promovendo a economia circular.

 Ao responsabilizar os fabricantes pela gestão do fim de vida de seus produtos, governos e sociedade incentivam o desenvolvimento do design sustentável e da reciclagem, incorporando uma nova ética ao processo produtivo. Exemplos de boas práticas estão reunidos no relatório Beyond an Age of Waste – Global Waste Management Outlook 2024, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP) e pela International Solid Waste Association (ISWA).

A Responsabilidade Estendida do Produtor (tradução livre da expressão – Extended Producer Responsibility-EPR) tem se mostrado eficaz na redução do impacto ambiental dos resíduos, ao incentivar os produtores a gerenciarem todo o ciclo de vida de seus produtos. Mais do que uma obrigação legal, essa iniciativa impulsiona a inovação, promove a economia circular e estimula o engajamento da sociedade em soluções sustentáveis, servindo de referência para gestores públicos, empresas, políticos e cidadãos interessados em boas práticas ambientais.

A colaboração entre governos, indústrias e consumidores também mostrou-se essencial, com modelos de parceria na Alemanha e no Reino Unido melhorando a infraestrutura de reciclagem. O direito ao reparo tem combatido a obsolescência programada, enquanto iniciativas como o programa “Cidades com Desperdício Zero” na China e o uso de nudges comportamentais (conceito definido pelos economistas Richard Thaler e Cass Sunstein) reforçam a importância de escolhas sustentáveis por meio de intervenções sutis que ajustam o ambiente de decisão do cidadão com o objetivo de influenciar positivamente o comportamento, sem restringir opções, como a colocação de lixeiras de reciclagem em locais estratégicos ou o uso de mensagens que destacam benefícios ambientais para incentivar práticas sustentáveis. Juntos, esses exemplos ilustram como o EPR vai além da gestão de resíduos, promovendo inovação, engajamento social e transformação econômica rumo a um futuro mais sustentável.

No fim, voltei para a gaveta quebrada. Observei-a cuidadosamente e a desmontei. À indignação, sobrepôs-se a curiosidade natural de quem busca entender o funcionamento das coisas e a vontade de não se render à lógica do descarte fácil. Em vez de me deixar levar pela frustração, tomei coragem e fui buscar meu kit de ferramentas essenciais para uma dona de casa ocupada e em apuros. Decidi consertá-la, em vez de descartá-la. Com um pouco de cola e algumas ferramentas, ela está de volta ao seu lugar, firme e forte.

E eu? Fiquei com a sensação de dever cumprido e com um sentimento de vingança satisfeito, pois superei o desafio, do meu jeito, claro, ao resistir à pressão de consumir. Apesar da vontade de estapear os provedores de serviços, dei um tapa na cara da obsolescência programada e superei a preguiça que, por vezes, me toma por completo. E a gaveta? Ah, essa agora tem uma cicatriz charmosa, um lembrete da minha rebeldia contra a cultura do descarte.