‘Lula pró-vida’ é tudo o que você precisa saber sobre política brasileira

Analisar a política pode ser um exercício muito interessante, principalmente se você nutre um fetiche de olhar as coisas tal como uma coruja em uma árvore, isto é, desprendido, alienado das volúpias e das sensações fanáticas que rondam os habitantes do solo. Foi assim que, durante a campanha presidencial de segundo turno, tentei analisar Lula se vendendo como um “pró-vida” convicto. Lula jamais foi pró-vida, e, sinceramente, todos nós sabíamos disso, o candidato petista apenas tentava se aproximar dos evangélicos e católicos mais ingênuos. Hoje, recuperado parcialmente o espaço para o óbvio na mídia brasileira, o Lula pró-vida voltou a ser o que sempre foi: uma mentira oportunista.

Lula endossa o aborto publicamente, pelo menos, desde 1994, quando esse assunto ainda era repelido com muito mais constância e violência pela população brasileira. Mas destaco, entre todos os endossos pró-aborto dele, aquele de 2018, quando, através de um tuíte do Instituto Lula, ele comemorou a liberação do procedimento na Argentina. Isso sem sequer entrarmos no mérito do “Livro de Resoluções e Moções do 3º Congresso do Partido dos Trabalhadores” de 2007, no qual, no item sobre o empoderamento feminino, o texto defende sem rodeios a descriminalização do aborto; e do PNDH-3, de 2009 ‒ reeditado em 2010 ‒ onde, ao menos cinco vezes, o documento do governo Lula defende abertamente a descriminalização do aborto e apoio àquelas que querem abortar. Enfim, não vou me demorar nesse assunto, pois falar sobre Lula pró-vida é o mesmo que discutir bola quadrada e comunista pró-mercado. Quem quiser entender a profundidade da burla, recomendo o texto que publiquei em meu blog pessoal intitulado “Se Lula é pró-vida eu sou um fisiculturista albino de Madagascar”.

Nesta semana, tudo isso ficou em evidência, pois o governo Lula revogou a portaria do governo Bolsonaro que desincentivava a prática do aborto, ou ao menos dificultava o interesse por essa alternativa. Os militantes e políticos petistas já comemoram a via aberta por essa decisão; na mesma semana, Lula retirou o Brasil da Declaração Internacional Contra o Aborto, na qual o país era um dos líderes. Ou seja, em uma semana, Lula esfregou na cara de todos a realidade de sua “volúpia pró-vida” de meses atrás. 

Isso, no entanto, não é assustador ‒ pelo menos não para mim. Nunca tive dúvidas do caráter pró-aborto de Lula e de seus séquitos, o assustador foi observar como, meses atrás, a grande mídia e até o judiciário brasileiro se mobilizaram para afastar os fatos óbvios de um Lula pró-aborto do debate público com o intuito claro de ajudar sua imagem ante os eleitores indecisos. No dia 16 de outubro, por exemplo, Cármen Lúcia, então ministra do Tribunal Eleitoral, mandou apagar a campanha de Bolsonaro que mostrava as falas e atos pró-aborto de Lula e seu governo, bem no momento que Lula, em movimento contrário, tentava se desvincular disso. Aliás, naquele mesmo instante, a CNBB ‒ que hoje está estupefata com o seu candidato “pró-vida” agindo decididamente rumo à legalização do aborto ‒ escrevia suas cartinhas subliminares onde supostamente ansiava defender a democracia e afastar o “ódio”  ‒ que pode ser entendido perfeitamente como “Bolsonaro” ‒ da política brasileira, sem se preocupar em destacar o risco social e moral de se votar em um candidato historicamente defensor da legalização do aborto. Sem falar dos inúmeros colunistas e influenciadores esquerdistas que tentavam, a todo custo, num esforço retórico louvável, justificar o Lula pró-vida para os militantes de esquerda favoráveis ao aborto, enquanto, ao mesmo tempo, lutavam para conseguir votos de cristãos para o seu deus de São Bernardo. Lembro-me hoje de um padre amigo meu ‒ mais lulista que a própria Janja ‒ que me asseverava de joelhos que o então candidato petista sempre fora contrário ao aborto.

O empenho em esconder o Lula pró-aborto mostra muito para aqueles que se dignificam a olhar a política de um ângulo afastado, “corujesco”, pois, daqui de cima, fica muito claro o esforço conjunto dos progressistas para eleger Lula. Esforço esse que envolvia desde o silenciamento de jornais e revistas contrárias via TSE, até transformar um esquerdista pró-aborto ‒ a maior esperança para os ativistas pró-aborto do Brasil ‒ no mais piedoso político pró-vida que pudéssemos imaginar. 

Fato é que essas duas manchetes: “Cármen Lúcia manda Bolsonaro tirar do ar propaganda que associa Lula a aborto”, de 16 de outubro, e Ministra da Saúde revoga portaria que dificultava aborto legal no país”, de 16 de janeiro, são absolutamente tudo o que precisamos saber sobre a política nacional nos últimos dois anos; e, se gostam da semiótica, aqui estão os sinais perfeitos dos quais podemos deduzir todas aquelas verdades profundas de nossa política atual. Caso queiramos entender como Lula, condenado em três instâncias num inquérito extinto pelo STF, é hoje o mesmo Lula presidente da República, precisamos apenas entender essa sinergia, essa comunhão nada aleatória que há entre aqueles que mascaravam os fatos sobre Lula e os que se beneficiavam com essas maquiagens. Nunca foi segredo a opção do progressismo e do mainstream brasileiros por Lula ‒ quem não se lembra dos olhos molhados de Bonner naquela entrevista patética do segundo turno ‒, mas é bom que fique gritantemente claro, pois, a transformação do suposto Lula pró-vida de três meses atrás no Lula pró-aborto desta semana pode ser aquele rasgo no véu que acordará grande parcela da sociedade brasileira para o óbvio.