O prazer de vadiar, caminhar por caminhar, sem pressa, numa metrópole vazia 

Primeiro dia do ano de 2023. Saio logo cedo para caminhar, andar preguiçosamente, vadiar por aí, aproveitando cada segundo ocioso que me permiti desfrutar pelas ruas desertas de uma metrópole brasileira. Por pouco não enlouqueci com a presença absoluta do silêncio que tomou a cidade. Ouvi meu coração bater, percebi os sons do meu corpo em movimento, o eco dos meus passos solitários vagando à toa pelos caminhos que aleatoriamente escolhi percorrer. Dei um tempo nos meus pensamentos. Às vezes, canso de mim mesma. Busquei refúgio em outras paragens para resgatar minha saúde mental. Sem fones de ouvido, celular utilizado apenas em busca de alguma imagem que me fizesse sentir bem e merecesse ser recordada.

Vislumbro uma oportunidade: que tal observar como espectadora, apaixonada por cidades, os feitos humanos organizados para uso e deleite dos cidadãos? Vamos esquecer a pesquisadora em cidades? Pareceu boa ideia. Consigo? Talvez. Na qualidade de andarilha errante, nos lugares por onde o trajeto foi realizado, os automóveis não impuseram sua presença. Sensação de tranquilidade realizada. Mal de uma modernidade que impôs a locomoção individual motorizada como referência imagética de prosperidade urbana. As ruas mostram sua feição quase amistosa para comigo, uma passeadora que pretendia observar, questionar e encontrar, eventualmente, uma cidade só minha, escondida nos caminhos, ruazinhas e avenidas que divido com a multidão de pessoas e automóveis que correm diariamente para lá e para cá com pressa. Que novidades me aguardam esta cidade só minha? Qual será a narrativa final?

Buscava outra forma de ver e sentir os prédios, as ruas, os semáforos, esquinas e até os buracos das calçadas que, sistematicamente, derrubam aqueles mais distraídos. Olhar para o chão e por onde se anda é um hábito incorporado aos brasileiros que moram em cidades grandes. Tantos foram meus tombos ao longo da vida olhando para o céu que aprendi a olhar para o chão. No dia 1º, buscava ver mais do que ser vista. Pretendia encontrar uma narrativa oposta àquela construída pelas regulações urbanas com sua (i)lógica funcionalidade, pelas incorporadoras que, na busca insana dos futuros compradores, vendem tendências para o habitar contemporâneo como a exclusão de cozinhas e lavanderias denominando-os estúdios que, de tão apertadinhos, lembram caixas de sapatos infantis. Embriagados (ou deixando-se enganar, como queiram) pelos juros altíssimos cobrados pelo crédito imobiliário e pela promessa de felicidade instantânea com a compra de meia dúzia de itens desnecessários, os endividados contemporâneos não hesitam em aderir à moda, aos influencers e ao marketing: ser feliz é consumir. 

Lembrei-me das aulas do geografo Milton Santos nas quais enfatizava que a educação realizada pelas escolas deveria ser apta a formar concomitantemente cidadão integrais e indivíduos fortes cuja construção, lastreada na solidariedade social exercida coletivamente e no sistema jurídico vigente, seria capaz de evitar a barbárie. Aos apontamentos feitos por mim no final do século passado, eu acrescentaria “evitar o obscurantismo e o terraplanismo” típico dos populistas contemporâneos fujões. Não preciso citar nomes: estão matando a saudade de comer frango frito e hambúrguer em alguma loja de fast food na Flórida enquanto brasileiros ganharam a fome como companheira. O crime, no Brasil, compensa, afinal. Voltando aos ensinamentos do professor, ele se referia àqueles que apresentam pensamentos políticos planos, rasos, de deficientes cívicos em função da substituição das noções básicas de democracia, república e cidadania pela retórica e narrativas enganadoras dos discursos construídos pelo marketing político e pelo consumo. O indivíduo forte, ciente do contexto social e cultural em que se encontra, dá lugar ao indivíduo egoísta, cujo único interesse é levar vantagem em tudo e, preferencialmente, sem contrapartida alguma, fragmentando o tecido social e enterrando de vez sentimentos como empatia e solidariedade. Preciso resistir à dureza do pensamento contemporâneo e voltar ao objetivo inicial: melhorar minha saúde mental, flanando.

Não consigo. Em “A cidade contemporânea e sua função fática: simbolismo e narrativa do lugar”, os autores Soukef e Busnardo (2019) descrevem a cidade como um texto, cujas palavras expostas sobre a paisagem por meio da organização dos artefatos criados para atender as necessidades humanas e o exercício da esfera de vida pública, permitem narrativas distintas aos caminhantes que, como eu, percorrem suas ruas, vielas, edifícios e áreas livres em busca de sua identidade cultural. Por terem sido escritas por várias mãos ao longo da história, permitem que pervagantes, como eu, obtenham leituras individuais de suas cidades. Como vejo o lugar em que estou passeando agora e que história conto sobre minha experiência? O consumo, digamos assim, da paisagem local, será repleto de múltiplas narrativas, certamente, ricas em conteúdo, plurais nas ideias e dissonantes da voz unificadora comunicada à exaustão pelos meios de comunicação. Passear, andar sem rumo, divagar e flanar abrem um leque de possibilidades e de prazeres que preenchem o espírito e saciam a sede por novidades de forma única. 

Também sou consumidora. Não produzo tudo o que preciso para realizar minha vida urbana. Busco alimentar-me de imagens, boas conversas, espaços únicos, locais que me façam perder o fôlego, sons únicos de catedrais, pássaros, edifícios inesquecíveis, situações, pessoas e coisas que construam memórias e que me encantem a ponto de me fazer querer vivenciar mais experiências boas. Arranco das cidades, sua identidade, sua cultura. E quais foram as novidades encontradas nos lugares que percorro diariamente durante o passeio do dia 1º?

O bairro onde moro, em demolição nos últimos anos, apagou minhas lembranças a troco de meia dúzia de tostões dados à prefeitura, na forma de outorga onerosa. As regulações urbanas, que persistem no discurso oficial público como locais em que a justiça social será realizada por meio dos novos edifícios e moradias aos mais pobres, erigiram monstrengos que, sem limite de altura e matando a vida comunitária, são vendidos a preço de ouro com incentivos públicos, verdadeiras benesses, que expulsam a todos. Provisão de habitações sociais, lojinhas e áreas públicas em frente aos complexos multifuncionais? História para “boi dormir”, já dizia meu pai. De descolado, elegante, repleto de áreas verdes e comércio inigualável não tem nada. A moça de salto alto e roupinha da moda, que anda ao lado de um rapaz que esbanja autossuficiência financeira, é a imagem que se repete à exaustão nos folders que, para vender imóveis, consomem a vida e a memória de bairros inteiros. 

Está difícil limpar a mente de pensamentos que infestam a vida de pesquisadores que buscam cidade humanas e socialmente justas. Sinto muito. Voltando ao flanar. Consegui ouvir o som do silêncio em meio à avenida que ensurdece a todos ao longo dos dias, apreciar grafites que, nas paredes e muros por meio de sua arte efêmera, gritam as agruras de uma vida vivida em cidades grandes onde a desigualdade tornou-se fato corriqueiro. Ao percorrer os tradicionais obstáculos nas calçadas a partir do edifício onde moro — contei 12 só em frente ao meu —, registrei a imagem das flores que ilustram a coluna de hoje. Persistentes, mostram que é possível brotar e existir, entre as ranhuras, bueiros, tampos desnivelados e árvores sofridas, um conjunto de flores de uma cor linda, iluminando o dia que também mostrava-se ensolarado. Sinto-me agradecida e feliz. Voltei melhor.

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas.