Restrição ao uso de água pode fechar fazendas nos Estados Unidos

Nos EUA, agricultores afirmam que há uma tentativa do governo de fechar pequenas fazendas. Isso porque, no estado do Oregon, o governo está tornando as regras sobre uso da água mais rígidas e elevando as regulamentações, o que pode inviabilizar a atividade em pequenas propriedades. Confira a conversa que tive com o coordenador do laboratório de bioeconomia da FGV, Daniel Vargas.
O que está acontecendo nos Estados Unidos? Por que a regulação do uso da água em Oregon por lá é tão importante de se observar?
A legislação de regulação do uso da água em Oregon é bastante antiga, desde o início do século XX. O que tem acontecido nos últimos anos é um movimento de alerta e de preocupação disseminada com o risco de erosão dos lençóis freáticos. A partir disso, o legislador de Oregon tem reinterpretado as suas regras para torná-las, digamos assim, mais exigentes. Entre as mudanças que estão sendo feitas por esse novo critério de interpretação. Está, de um lado, a exigência de que os produtores que utilizem, de algum modo, a irrigação, solicitem alguma licença para o direito de uso da água. A verdade, no entanto, é que é um sistema muito caro, muito exigente com regras novas e que naturalmente afasta alguns produtores. E, segundo, exigindo também que especialmente pecuaristas estabeleçam a infraestrutura de escoamento dos dejetos, o que é estimado em um custo que é maior do que US$ 100 mil. E quando nós combinamos esses dois conjuntos de exigências, que tratam agricultores que usam água para produzir alimentos ou pecuaristas, ou granjas, ou produtores de ovelhas que cultivam essa atividade para sobreviver, o que nós estamos vendo é a imposição de um conjunto de restrições econômicas que naturalmente ameaçam o funcionamento dessas atividades. O grande, como é de praxe, consegue diluir o preço nas suas atividades, o pequeno fica embarreirado no cartório burocrático estabelecido pelas regras ambientais.
Isso é algo novo?
Esse alerta é importante porque uma norma e o seu sentido não são dados apenas pelo texto, mas pelo seu significado na realidade. E o que está acontecendo em Oregon, no fundo, é um script que nós já conhecemos de “outros carnavais”. Primeiro, se começa com uma ameaça de cataclismo, uma síndrome do medo que dá origem especialmente nos setores de classe média urbana a um lobby ambiental regulatório. E na hora que essa demanda regulatória é executada, ela elege um adversário preferencial: o produtor de alimentos. Então mudam-se as roupas do problema, mas o seu corpo é mantido igual. Todo problema ambiental, em última análise, acaba sendo traduzido em restrições econômicas que elegem como inimigo preferencial o produtor de alimentos. E é curioso que é como se apenas pelo fato de se tocar a terra para produzir o alimento, agora o produtor passa a ser visto como uma espécie de ameaça à humanidade. E para conter o risco que a sua ação, que seu gesto, provoque alguma erosão no meio ambiente ou no uso da água, é que se impõe essas restrições que condicionam a atividade econômica a uma pré-aprovação do estado ou a uma certificação de alguma organização social.
Essas regulamentações mais rigorosas, ou apenas regulamentações para o uso da água, fazem parte de um movimento global?
Na verdade, as preocupações com a água tem se tornado um tema central em inúmeros estados americanos, na Europa e, cada vez mais, também na América Latina. Nós costumamos dizer muitas vezes que, quando um problema acontece uma ou duas vezes, é um problema técnico para ser resolvido pontualmente. Quando o problema se repete várias vezes em um mesmo continente ou em um mesmo tema, nós temos um problema de um padrão repetitivo e, portanto, de uma regra ou de uma instituição. Mas quando nós temos um problema que se repete disseminadamente, em contextos e países diferentes, mudando os focos, mas de certo modo revelando a mesma maneira de olhar para o adversário para o encaminhamento da solução, o que nós temos é um problema cultural ou um problema moral. E nesse ponto, o desafio é da gente revelar, expor o que está em jogo nesse tipo de agenda que usa informações em alguns casos verídicas, preocupações em alguns casos legítimas, para se criar uma espécie de segmentação comercial que privilegia um conjunto de atividades, um conjunto de produtores, e exclui muitos, criando com isso enormes ameaças e problemas muitas vezes maiores do que aqueles que originalmente se queria resolver.
Qual é essa questão que precisa ser exposta? O que o agro do Brasil precisa compreender sobre esse contexto todo que estamos aqui tratando?
O mundo elegeu nos últimos anos o produtor de alimentos como inimigo preferencial do clima. Nós temos ao longo dos anos uma compreensão de que as mudanças climáticas provocam alterações no planeta. Nós temos a compreensão de que é importante gerir e usar adequadamente os recursos naturais. Na hora de estruturar um caminho da solução, na hora de repartir os custos entre as atividades, entre os setores para essa chamada transição verde, o mundo optou por descarregar nas costas de quem produz alimento a responsabilidade pelos danos do planeta. E, ao fazer isso, a gente comete uma série de erros gravíssimos cuja conta nós mesmos podemos acabar pagando com juros e correção. Porque nós sabemos que o produtor é a base do alimento, e o alimento não é apenas importante para nos nutrir. O alimento é a base da economia do interior do mundo. Cidades do interior americano são movidas pela produção do alimento, o comércio local, o transporte local, a cooperativa local, a comida das escolas e dos hospitais locais. A cultura local gira em torno da produção de alimentos, e no Brasil não é diferente. Quando se elege o produtor como adversário preferencial, o que também se está fazendo é atacando um modo de organização de vida que baseia a vida de comunidades, que é rodeado de valores e que acredita na confiança entre as pessoas como um caminho para criação de uma prosperidade coletiva. Se isso tudo entra em cheque, o que sobra é um mundo da desconfiança, do medo, do cerceamento, que apenas tenderá a construir miséria, desconfiança, ódio e animosidade que não interessam a ninguém.
Como essa discussão envolvendo a restrição ao uso da água já chegou ao Brasil?
No Brasil o debate é diferente. O que acontece entre nós é que a nossa fonte prioritária de geração de água são as chuvas, em particular, alimentadas pela evapotranspiração da Amazônia. Então, na medida em que avança o desmatamento e muda o ciclo hidrológico, nós também reduzimos a irrigação natural que nós recebemos do ar, sobretudo naquelas áreas de produção de lavoura no Centro-Oeste, muitas vezes também em outras partes do Brasil. No nosso caso, nós temos uma outra dinâmica, outra preocupação. E no nosso caso, a raiz do problema é a criminalidade que destrói a floresta.