Retorno da seleção pentacampeã ao Brasil foi marcado por incidente com FHC

Depois da vitória brasileira sobre a Alemanha, em 30 de junho de 2002, e a inédita conquista do penta, em Yokohama, as últimas horas da seleção no Japão foram marcadas por tensão política. Até os instantes finais na Ásia, havia dúvidas se a CBF aceitaria participar de uma recepção oferecida pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em Brasília. Para o cartola Ricardo Teixeira, comandante da entidade, o governo não tinha feito absolutamente nada para impedir a abertura de duas comissões parlamentares de inquérito no Congresso: a CPI da CBF/Nike, na Câmara, e a CPI do futebol, no Senado. A assessoria de Ronaldo Fenômeno, autor dos dois gols da finalíssima, chegou a brincar, dizendo que uma nova CPI seria instalada para investigar por que o Brasil ganhou o pentacampeonato.
Durante o Mundial, FHC editou a medida provisória de “moralização do futebol”, que contrariava interesses de clubes e de federações pelo país. Depois do título, o Palácio do Planalto enviou uma mensagem do presidente à nação: “O Brasil inteiro vibra com a conquista do penta. As lágrimas do Ronaldo, de Felipão e dos demais jogadores na hora do apito final são as lágrimas de emoção e alegria de todo o povo brasileiro. Vocês mostraram, com talento, com garra e com espírito de equipe, que nosso futebol continua a ser o melhor do mundo. Como todos os brasileiros, senti orgulho e me emocionei com a vitória histórica, que coroou uma campanha brilhante nos campos da Coreia e do Japão. Meus parabéns a todos vocês, que deram esta grande alegria ao povo brasileiro”.
Ainda no domingo, 30 de junho, Fernando Henrique Cardoso conversou, por telefone, com Ronaldo e Cafu. Ao atender a imprensa na porta do Palácio da Alvorada, depois da conquista, ele elogiou a seleção pela garra e talento, e destacou que o empenho na Copa serviria de lição para o país superar as dificuldades: “Havendo organização e garra, nós vamos vencer”. Segurando a bandeira brasileira, FHC mandou um recado ao técnico Scolari: “Queria agradecer ao Felipão, que deu exemplo daquilo que nós todos devemos seguir. É preciso que haja perseverança.” Sobre Ronaldo, disse: “venceu a dificuldade toda.” Em Brasília, foi decretado ponto facultativo no começo da semana e outros governadores teriam autonomia para fazer o mesmo.
Apesar da personalidade discreta, o craque Rivaldo travou um embate com o presidente da República. O jogador fez questão de citar uma frase dita pelo político que o Brasil fora da Copa seria “pior que tudo”. “Aquilo magoou a todos. É difícil estar sendo pressionado e aí chega o presidente e aumenta a pressão. Mas não tem problema. Estaremos com ele em Brasília”, afirmou o camisa 10 da seleção. Questionado se cumprimentaria o presidente, ele evitou polemizar: “(…) Se precisar, aperto a mão dele, sem problemas. (…) Fiz uma grande Copa em 1998, mas não consegui o título. (…) Tenho 30 anos e foi meu último Mundial. Por isso, tinha de conseguir o título para entrar para a história”.
Nos bastidores, houve um trabalho intenso da cartolagem para contornar o clima de mal-estar. O ministro do Esporte e Turismo, Caio Luiz de Carvalho, confirmou que o voo fretado da seleção iria chegar ao Distrito Federal na terça-feira, dia 2 de julho. O secretário-geral da CBF, Marco Antonio Teixeira, ratificou o roteiro dos campeões: Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Entretanto, ele ponderou: “Vamos até Brasília, mas a vitória na Copa é do povo. O presidente [Ricardo Teixeira, da CBF] dedica esse título a todos os brasileiros”. Ricardo Teixeira fugiu da polêmica nos microfones: “Estou exausto. Agora, quero apenas descansar um pouco e comemorar a vitória do Brasil, que é a vitória do povo”.
A aeronave com os pentacampeões deixou Tóquio na noite de segunda-feira com 204 pessoas a bordo, sendo 190 passageiros e 14 tripulantes. Já era terça-feira, quando houve o desembarque em Brasília. Foi oferecido um coquetel, ainda no local, e os atletas demoraram mais de uma hora para subir em um trio elétrico oferecido por uma fabricante de cerveja. Um caminhão dos bombeiros, o mesmo que tinha levado os campeões de 1970 e de 1994, fazia uma espécie de “escolta” do trio-elétrico. Enquanto isso, um avião da esquadrilha da fumaça deixou no céu a inscrição “penta”.
No Planalto, ao menos, duas mil pessoas lotavam o salão central e o mezanino. Muita gente aguardou por mais de seis horas a chegada dos pentacampeões. Houve empurra-empurra no desembarque do trio elétrico e muitos torcedores conseguiram chegar perto dos atletas. Foram registrados desmaios, inclusive de crianças. “A emoção é grande de ver chegar os jogadores. É muita alegria porque o povo está feliz e os jogadores também”, declarou FHC ao avistar os jogadores. A confusão era tanta que o presidente não conseguiu se aproximar do parlatório. Outros políticos que tentaram pegar “carona” na festa foram vaiados pelo público. A imprensa registrou uma conversa no pé do ouvido entre FHC e o craque Rivaldo, que tinham se estranhado nas últimas semanas.
FHC: “Você ainda está puto comigo?”
Rivaldo: “Que é isso, presidente?”
Já na parte de cima da rampa da sede do poder executivo, o presidente Fernando Henrique Cardoso distribuiu medalhas da Ordem Nacional do Mérito e fez questão de erguer a taça. Foi um momento de muita descontração. Ronaldinho estava com um lenço na cabeça, o goleiro Marcos vestia a camisa do Palmeiras, e Vampeta, a do Corinthians. Naquele momento, Vamp protagonizou a célebre imagem das cambalhotas na rampa. “Eu jogava, me divertia, dava risada e até hoje sou lembrado pela irreverência”, detalha Vampeta. A comissão técnica só deixou a Praça dos Três Poderes por volta das 15h15 daquela terça-feira rumo ao aeroporto e partiu para o Rio de Janeiro.
Na chegada ao Galeão, o desfile, também em um trio elétrico da empresa patrocinadora, teve o seguinte trajeto: Avenida Brasil, centro e praias do Flamengo e Botafogo. Participaram da festa: Marcos, Cafu, Roque Júnior, Roberto Carlos, Edmílson, Ronaldo, Kléberson, Rogério Ceni, Belletti, Anderson Polga, Kaká, Juninho Paulista, Luizão, Ricardinho, Denílson e o técnico Luiz Felipe Scolari. Os demais campeões tinham se separado do grupo em Brasília. Por volta das 2h da madrugada, já do dia 3 de julho, quarta-feira, os atletas, que estavam havia mais de 60 horas sem dormir, desistiram de seguir até Copacabana e trocaram o trio elétrico por um ônibus. O próprio Scolari fez o anúncio para a multidão: “A seleção é uma família e ela está muito cansada. Eu, como pai desses meninos, vou levá-los para dormir.”
Foi uma “via sacra”!