Sobre enchentes e inundações: estamos caminhando para uma maior justiça social?

No dia 16 de março, a Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente da Câmara Municipal de São Paulo realizou uma audiência pública com o tema: “Enchentes em São Paulo: Quais as possíveis soluções?” em atendimento ao requerimento da vereadora Sílvia da Bancada Feminista (PSOL) para a realização de um debate sobre o tema. Enchentes, alagamentos e inundações são uma constante na vida de todo o paulistano que mora nas extensas periferias que espalham a mancha urbana até bem longe da infraestrutura urbana. Perdas materiais, quando não mortes, assombram seus moradores a cada nuvem pesada que aparece no céu. Desta vez, uma moradora faleceu afogada dentro do carro, numa região central, sobre o asfalto e longe de córregos e rios. Quando a infraestrutura é antiga, falha ou inexistente, a morte pode ocorrer e pouco importa se é na região central ou nas tão maltratadas periferias urbanas. Planos existem muitos, propostas e ações também. Mas então o que é que está acontecendo? Por que mortes e perdas de bens persistem ano após ano? O que a Prefeitura de São Paulo está fazendo para evitar tudo isso?

O assunto é complexo e merece ser debatido com a população que sofre as consequências. Para esclarecer estas questões, a audiência pública convocada pela bancada feminina do PSOL, convidou representantes da sociedade civil, principais afetados, pesquisadores especialistas em redes de drenagem e planejamento urbano além de representantes públicos, políticos e técnicos. Estavam presentes o secretário-executivo de Mudanças Climáticas (SECLIMA) Fernando Pinheiro Pedro e o secretário Marcos Monteiro da Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB) e especialistas em drenagem. O protagonismo da audiência foi marcado pelas falas das lideranças comunitárias representadas pelo MAB – Movimentos dos Atingidos por Barragens e Enchentes, do Córrego do Bispo, da Cidade Ademar, da Lapa de Baixo. A Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (SIURB), em parceria com a Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica (FCTH), da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (EPUSP), elaborou 17 Cadernos de Drenagem das bacias hidrográficas da cidade que compõem o Plano Diretor de Drenagem do Município de São Paulo – PDD e que subsidiam as ações de planejamento e gestão do sistema de drenagem urbano. 

É um trabalho de fôlego que demanda, para alcançar a eficácia desejada pela população, a elaboração de políticas públicas urbanas voltadas à produção, manutenção e gestão da infraestrutura de drenagem situação não prevista nas gestões anteriores e nem na atual, do prefeito Ricardo Nunes. São escolhas, que influenciam diretamente o que tem sido planejado, onde foi implantado, as soluções adotadas e, principalmente, a quem se destinam, diz a Dra. Luciana Travassos (Universidade Federal do ABC, pesquisadora em Mudanças climáticas, risco e vulnerabilidade). Em sua fala, a urbanista lembra que as mortes ocorrem principalmente em áreas vulneráveis, locais onde a autoconstrução instala-se sobre loteamentos autoproduzidos em geografia física frágil que, quando associada aos extremos pluviométricos que despencam sobre a cidade, mostra-se incapaz de sustentar moradias erguidas com técnicas e materiais inadequados a estes locais. Sem crédito bancário para viabilizar a empreitada, suas escolhas restringem-se ao que cabe no bolso e à ajuda dos vizinhos e parentes para levantar seu lar e abrigar a família. O poder público poderia regularizar a posse do que já existe há décadas e investir em infraestrutura e programas de assistência técnica como o ATHIS? Poderia. Mas…

Em sua apresentação, Anderson Kazuo Nakano (Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo, pesquisador em Densidade urbana, desigualdades socioespaciais e distribuição espacial de populações) alertou para o fato de que mortes e perdas materiais tem cor e gênero: predominam mulheres, pretas, com filhos e de baixo poder aquisitivo. Embora os cadernos de drenagem urbana sejam importantes instrumentos de planejamento urbano, é possível verificar que obras para canalização concentram-se nos problemas que afetam avenidas e regiões centrais. A plataforma Geosampa, portal da prefeitura de São Paulo que apresenta dados sobre as inundações e alagamentos, restringe-se aos grandes eixos de circulação de transporte, além de conter informações que necessitam de atualização constante. Como sugestão, o urbanista cobra um trabalho conjunto entre conselhos, associações de bairro e demais agentes de representação local para a atualização das informações em escala local, chegando, de certa forma, às microbacias. Mesmo os mapas apresentados nos cadernos de drenagem voltam-se aos problemas de macro escala, ou ainda, não detectam as ruas onde você, leitor, e eu, moramos. As reflexões valem para outras cidades brasileiras. O prefeito da sua cidade conhece os problemas do bairro? E os vereadores? Eles sabem onde a sua rua alaga? Acredito que não. Mas as associações de bairro e conselhos gestores, sabem muito bem, Acaso a prefeitura os consulta? Pouco provável.

A partir destas questões, a população, principal participante do evento, questionou a prioridade na escolha das 56 obras em andamento. Por que não estão priorizando as periferias e, em especial, as áreas de risco 3 e 4 e que encontram-se expostas a desabamentos e inundação iminentes?  Nas discussões sobre os cadernos, onde estão as demais secretarias como a da habitação, assistência social por exemplo e que tratam de questões relacionadas à realocação das populações com risco de morte? Por que a prioridade da prefeitura para drenar o sistema viário se, as chuvas, causam estrago e mortes nas áreas vulneráveis sobre onde caem? Mortes são irremediáveis, não dá para aceitar fórmulas e cálculos que colocam a vida das pessoas num segundo plano. Os participantes, a despeito das justificativas técnicas apresentadas pelos secretários públicos, cobraram a falta de elaboração do Plano Municipal de Redução de Riscos previsto pelo Plano Diretor e cobrado pelo Ministério Público que encontra-se em estudos e fundamenta as decisões do executivo quanto a construção de obras concretas nas áreas de risco mapeadas no município. Como entender que uma cidade do tamanho de São Paulo ainda não em políticas públicas voltadas à implantação de infraestrutura drenante e, mais, que não deu andamento ao plano que pretende evitar mortes e perdas?

A bancada feminina do PSOL, bem como representantes da sociedade civil apontaram problemas causados pela falta de articulação entre secretarias quando realizam planos de obras ou planos emergenciais além da ausência de representação da sociedade civil tanto na elaboração quanto no processo decisório destes planos e obras. Como escrevi na coluna passada, os labirintos burocráticos tornam as prefeituras impenetráveis às reivindicações populares. Em sua fala, Marcos Monteiro (SiUrb) lamentou a incapacidade da prefeitura em comunicar adequadamente todo o trabalho que vem sendo realizado pelas secretarias a respeito das obras em andamento. Eu também. Mas solução, barata e de curto prazo tem. A população encontra-se distante do processo de elaboração e decisão do poder público. O Estatuto das cidades apresenta os instrumentos de participação popular. Quanto mais próxima dos conselhos municipais, dos representantes das câmaras temáticas, das associações de moradores e demais formas de organização da sociedade civil a prefeitura estiver, ouvindo suas demandas locais, trabalhando e decidindo juntos, melhor será a comunicação entre o poder público e o cidadão. Mais do que marketing, as prefeituras brasileiras devem interagir com o cidadão. Este é segredo. Interação e comunicação andam juntos. Será que de fato a prefeitura de São Paulo está priorizando as pessoas que mais precisam? Estamos realmente caminhando para uma maior justiça socioambiental? Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas