A cupinização das instituições pelos autocratas e o déficit de democracia
O déficit de democracia pelo mundo só aumenta. Em quase todos os cantos do planeta proliferam governantes de DNA autoritário, mas ainda sem coragem ou força para implantar regimes abertamente iliberais ou explicitamente autocráticos. Muitas vezes, as tentativas de impor governos de partido único ou ditaduras enrustidas esbarram em instituições resilientes, como aliás se demonstrou o STF brasileiro. Mas em outras, como na Turquia, Hungria e Venezuela, o Judiciário independente é simplesmente aniquilado. Nesses casos, dependendo da força de que dispõe, o Executivo pode fazer a intervenção sozinho ou com o apoio de um Legislativo subserviente. E então, para manter uma Justiça de fachada, a regra é levar para os tribunais juízes-fantoches.
Os três países mencionados, e poderia citar outras três dezenas, aumentaram de forma exponencial o déficit de democracia de uma década para cá. Na Hungria, Viktor Orbán, no poder há quase 14 anos, o que faz dele o governante mais longevo entre os países da União Europeia, acabou com a liberdade de imprensa, com a independência do Judiciário e atacou empresários que lhe são hostis. Um de seus alvos é o megainvestidor George Soros, americano de origem húngara, que foi obrigado a fechar a Universidade da Europa Central inaugurada no país em 1991, logo após a queda do comunismo. O país regula a importação de papel jornal, o que acaba inviabilizando as atividades de veículos de oposição. Para piorar, anunciantes são constrangidos a não veicular suas marcas em publicações que ousam divergir de Orbán.
Na Turquia não é muito diferente. Os ataques à democracia se tornaram mais frequentes principalmente a partir de 2016, quando o presidente Recip Erdogan resistiu a uma tentativa de golpe. Se antes já não tinha tanta vocação para governar respeitando as liberdades, desde então conduz sem escrúpulos a Turquia a um regime iliberal. Pior ainda está a Venezuela de Nicolás Maduro, no poder desde 2013, logo após a morte de Hugo Chávez. Se o seu mentor ainda tolerava a oposição, e não foram poucas as acusações de fraude na eleição em que quase perdeu para Henrique Capriles em 2012, Maduro não se faz de rogado e simplesmente manda para a cadeia todos os oposicionistas que possam lhe oferecer algum risco.
O fato é que os três países, como tantos outros, pioraram demais seus indicadores de liberdade política quando comparados ao cenário de não mais que uma década e meia atrás. E não são os únicos. Na primeira semana deste mês, o presidente de Senegal, Macky Sall, simplesmente decidiu adiar por tempo indeterminado as eleições que apontariam seu sucessor. Sem poder concorrer à reeleição, pois já se encontra em segundo mandato, Sall com isso interrompe duas décadas de normalidade eleitoral, o que em se tratando de África não é pouca coisa. Na Rússia, a comissão eleitoral rejeitou a candidatura a presidente de Boris Nadejdine. Crítico da Guerra da Ucrânia, seria o único desafiante do presidente Vladimir Putin na eleição que ocorrerá nesse ano. Vale lembrar que após a reforma que seu governo promoveu na Constituição, Putin poderá permanecer no poder até 2036!
Em vários países, ditaduras ou democracias iliberais infelizmente se multiplicam. O prestigiado escritor e cientista político Moisés Naim adverte para o crescente poder do que classifica de autocratas dos 3 Ps, que tentam impor a cupinização das instituições por meio do populismo, polarização e da pós-verdade. Entende-se por esta última o uso estratégico da confusão como método para o desaparecimento de padrões objetivos compartilhados para se reconhecer a verdade. Nessa categoria dos autocratas 3 Ps, Naim destaca Orbán, Putin, Chávez, Erdogan, Trump e Bolsonaro. E o mais revelador é que ele incluiu o brasileiro ainda antes do 8 de Janeiro.