Até turistas são afetados quando espaços públicos de uma cidade perdem sua autenticidade

Saio pouco de casa. No passado, nem tão distante, costumava ter quatro ou cinco compromissos ao longo do dia, em decorrência de uma rotina que me impus, seja pelos diversos empregos, seja pelas atividades triviais e cotidianas relacionadas à vida. Para me deslocar, usava o carro, privilégio de poucos, confesso. Ao longo dos anos, por prescrição médica, virei andarilha. Perfeita flâneur, desenterrei meu lado bisbilhoteiro e descobri-me enxerida nata. Ouvir a conversa dos outros é, para mim, abrir a caixa de Pandora: eu não consigo imaginar a surpresa que me aguarda nas conversas entre desconhecidos.

Dia desses, vejo dois casais parados em frente a uma longa fileira de tapumes. “Não tem nada aí para olhar”, pensei, “o que estarão fazendo?”. Cheguei mais perto. “Mor… cadê aquela confeitaria gostosinha? Não é aqui?”. “Ué” diz o moço, “não entendi. Acho que a gente errou o lugar”. O outro casal: “Não… tenho certeza, é aqui sim… é do lado daquela loja fechada que a gente comprou uns artesanatos, lembra? Parece que andaram cortando as árvores grandes também”. Suspirando, a outra moça reclama: “Não é mais o lugar que a gente vinha pra conversar. Vão construir prédio”.

“Claramente turistas”, pensei. Os dois casais se afastaram em busca de algum lugar que lhes proporcionasse a mesma sensação boa da tal confeitaria. Identidade do lugar e memória afetiva seriam as expressões que, numa sala de aula, utilizaria para explicar a situação de conforto, felicidade e prazer vivenciado em bons momentos e lembranças que acontecem em espaços públicos, na rua, na praça, no parque, na praia. As duas confeitarias destacavam-se pelo doces artesanais. Nada excepcional. Eu mesma parava, vez e outra por ali, para tomar um simples capuccino, que nem era tão bom assim, por um par de horas, simplesmente para ver pessoas, ouvir conversas alheias e colocar meus pensamentos em ordem. Respirar, enfim. O fato é que não eram franquias que vendem tudo igual em qualquer lugar e, também, não exibiam nenhum ranqueamento 5 estrelas nas paredes. O “chef”, basicamente, era o proprietário do estabelecimento que pensava assar bons bolos, doces e biscoitos. Por décadas, fez isso e vendeu muito com suas receitas. Deixou muita gente feliz. Eu era uma delas. Os dois casais também.

As duas confeitarias? Nada instagramáveis. Resistiram por décadas ao assédio das incorporadoras imobiliárias. Foram ao chão. No lugar, estão sendo erguidos edifícios residenciais com apartamentos imensos que, no térreo, exibirão gradis e vigias para afastar pessoas indesejadas, sejam eles pedestres comuns como eu, sejam turistas ou bandidos. No projeto arquitetônico e sua inserção na rua, a relação com a calçada e tudo o que fica do lado de fora da propriedade, o tratamento dado aos desconhecidos, é igual. Gentileza urbana, cidade para pessoas e demais jargões da área, ficam só na concepção teórica e em folders para venda. Não tem regulamentação que mude a importância dada à cultura da propriedade individual e a priorização da venda destes verdadeiros monstrengos urbanos que não interagem com a cidade, as calçadas, as pessoas, o espaço público, enfim.

Conversei como minha colega arquiteta Daniela Flores Longato, doutora em administração (USCS) e especialista em destinos turísticos inteligentes sobre os eventuais impactos que a revisão dos planos diretores urbanos pode causar à área. Queria saber mais sobre o que se pretende mostrar aos visitantes, quando vários trechos urbanos são construídos priorizando o lucro individual da propriedade privada pela demolição da vida cotidiana. Em sua fala, ela afirma que, quando os processos de revisão dos planos diretores, zoneamento e regulações urbanas ocorrem de maneira desconectada das políticas culturais, sociais e ambientais, distanciando-se dos interesses das populações, comerciantes e de todos aqueles que tradicionalmente dão vida às ruas, afastam-se também, trazendo, eventualmente, resultados danosos, não apenas aos cidadãos e empresas, mas também ao turismo como negócio. Uma eventual descaracterização de espaços públicos pode levar à gentrificação, deslocando moradores e comerciantes locais, enfraquecendo o tecido social e empobrecendo a diversidade cultural. O impacto econômico negativo é inevitável tanto para o cidadão quanto para os visitantes, pois o turismo cultural, que busca autenticidade, é comprometido. 

Concordo com as palavras da pesquisadora. Quando os espaços públicos perdem sua autenticidade, aquilo que os torna únicos, tornando-se genéricos e estandardizados, a atração para turistas em busca de vivências únicas é comprometida. Isso resulta em uma diminuição do potencial turístico dessas áreas, afetando negativamente toda a economia local que depende desse fluxo de visitantes em busca de autenticidade cultural. Não sei o nome das pessoas com as quais compartilho as experiências cotidianas durante minhas andanças por aí, mas conheço-os, entendo seus hábitos, reconheço suas roupas e, em alguns casos, compartilho rotinas e lugares onde faço compras, ajusto roupas, conserto sapatos, faço mercado, tomo sorvete, compro pão ou desembraço os pensamentos enquanto tomo um café. Agora não mais. Turistas e eu, moradora, estamos sofrendo a perda sistemática de nossas memórias afetivas vinculadas ao lugar em que estamos quer como moradores, quer como visitantes que desejam conosco compartilhar hábitos e costumes locais. Peculiaridades essas que enriquecem tanto a vivência quanto a experiência urbana.

Políticas públicas de alcance global e generalista, desvinculadas da realidade local, resultam frequentemente em ações locais desastrosas. Isso conduz a perdas irreversíveis de espaços tradicionais, descaracterizando trechos da cidade e bairros inteiros, prejudicando não apenas o que é visível, mas também o tecido social e sua cultura material e imaterial, elementos que definem cada comunidade. 

E, para definir uma comunidade, a colaboração, como mencionei na coluna passada, depende da atuação no processo de envolvimento para a criação e produção dos diversos stakeholders ou, ainda, associações de bairro, coletivos, comerciantes, organizações não governamentais junto com governos e empresas para criar políticas que identifiquem as qualidades locais e que podem contribuir para o desenvolvimento econômico. Trata-se de um processo trabalhoso que envolve a atuação constante, sistemática e permanente dos agentes públicos que ocorre por meio da realização de consultas públicas, workshops e reuniões de trabalho contínuas que só terminam com um consenso de todos os envolvidos. Estas ações são indispensáveis para definir de ações e estratégias que irão aprimorar a qualidade da vida dos que residem e, a partir daí, destacar as peculiaridades que fazem daquele lugar, daquela esquina ou daquela rua, únicos. Apenas desta forma a mitigação de problemas resultantes do processo e transformação podem ser acordadas por todos.

A recente experiência de um casal de turistas, buscando em vão uma confeitaria querida, ilustra como a homogeneização da paisagem e a descaracterização de espaços públicos que conferem vida à cidade afetam não apenas os moradores, mas também os visitantes em busca de autenticidade. A colaboração entre diversos stakeholders, incluindo moradores, comerciantes, organizações não governamentais e governos, torna-se essencial para criar políticas que valorizem as qualidades locais e contribuam para o desenvolvimento econômico, social e ambiental. Portanto, preservar a identidade local não é apenas uma questão meramente estética, mas um investimento na riqueza cultural e no bem-estar das comunidades, garantindo um futuro mais autêntico e sustentável para as cidades.

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