Agora mais terror que sci-fi, Black Mirror ainda traz distopia tecnológica pertinente

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Black Mirror é, indiscutivelmente, uma das séries que tornou o serviço de streaming Netflix um sucesso global – e aqui eu até poderia dizer que é a maior responsável, mas aí sim a coisa fica bem discutível. Não por acaso o programa virou até gíria – “isso é muito Black Mirror, meo” –, usada para designar aqueles momentos em que uso diário da tecnologia beira a distopia, a catástrofe, a ruína humana.

Essa relação temática quase óbvia entre o nome da série e a tecnologia talvez explique o sucesso relativamente baixo alcançado pela nova temporada, a sexta, lançada no último dia 15 de julho, entre os cerca de 230 milhões de assinantes do serviço de streaming. A Netflix costumeiramente se esquiva de divulgar números brutos de audiência, mas o julgamento feito pelos críticos e pelos espectadores em serviços como Metacritic e Rotten Tomatoes deixa pouca margem para dúvida.

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Temporada 6 de Black Mirror definitivamente não caiu nas graças do público, indica o Rotten Tomatoes. Imagem: Reprodução

Fato é que os cinco novos episódios nem sempre se preocupam em mostrar os malefícios da tecnologia e de uma sociedade pautada por ela, conforme o próprio produtor da série, o britânico Charlie Brooker, admitiu em entrevistas recentes. Para ele, a série não é (nem nunca foi) sobre isso, mas sim sobre como “as pessoas são ferradas [tradução aliviada de propósito por esse que vos escreve]”.

“Foi definitivamente uma decisão consciente de mudar um pouco o que é o programa”, disse ele em entrevista ao GamesRadar+. “Eu estava quase pensando ‘Ok, vamos imaginar isso como uma peça complementar ao Black Mirror’.”

Depois de assistir às novas histórias criadas por Brooker, é seguro dizer que, embora Black Mirror tenha sim deslocado um pouco seu eixo temático, também segue sendo uma série sobre a tecnologia enquanto armadilha. Mesmo que essa tecnologia não seja lá tão nova…

Vou tentar não revelar muito sobre os episódios dessa temporada, caso você ainda não os tenha visto, mas talvez eu deixe escapar alguma coisa. Então, esteja avisado, há alguns spoilers daqui em diante.

Black Mirror: terror e gente ferrada

A primeira observação fácil de se fazer olhando para os cinco episódios é que a maioria deles busca se situar em no passado, ou em considerações presentes de eventos passados. O que parece claramente proposital, quando se consideram as declarações do produtor.

Beyond the Sea, por exemplo, se passa em 1969 – não por acaso o ano da chegada do homem à Lua. Demon 79, por sua vez, está (claro) em 1979, e Mazey Day se situa em algum lugar no começo dos anos 2000, com seus celulares de teclado e notebooks tijolões.

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O robô assassino de Metalhead. Qualquer semelhança com um certo cachorro-robô com uma metralhadora nas costas não é mera coincidência. Imagem: Reprodução

Isso já é por si uma mudança substancial, pois não estamos mais olhando para futuros distópicos como em Metalhead (4ª temporada) – em que um robô-cachorro assassino persegue uma mulher corajosa – ou Nosedive (3ª temporada) – sobre outra mulher menos corajosa que cai em desgraça em um mundo em que as redes sociais são o terreno absoluto das relações entre as pessoas.

Nessa sexta temporada de Black Mirror há o sobrenatural, inclusive monstros literais, e gente muito, muito ferrada. Há lobisomens, assassinos seriais fetichistas, chantagem e manipulação ao estilo Jogos Mortais, entre outras bizarrices.

A temporada flerta em muitos momentos com o terror. Não sou lá o tipo de pessoa que teve um poster de Pânico na parede quando adolescente, então talvez eu não seja exatamente o melhor sujeito para julgar a qualidade dos sustos oferecidos.

Mas é terror.

A intenção é assustar e chocar – o que, convenhamos, já estava lá, em absolutamente todas as temporadas anteriores, salvo raras exceções. E aqui faço menção honrosa ao belíssimo San Junipero (3ª temporada), uma história de amor daquelas difíceis de esquecer (mesmo que a distopia assustadora não se faça ausente).

Também está lá, nessa temporada última, gente de moral muito duvidosa. A atriz famosa que abusa de drogas, dirige e atropela um desconhecido. A paparazzi com crises éticas mas que, bem, pela grana, faz o precisar ser feito. O astronauta que tenta ajudar o colega que passou por uma tragédia recente, mas que na prática é um pai ausente preocupado com padrões sociais.

“Monstro”, aliás, é uma palavra que a própria protagonista de Joan is Awful, o episódio que abre a temporada, usa muito para definir a si mesma. E esse episódio é, sem dúvida, o mais Black Mirror da nova temporada de Black Mirror, seguido de perto por Beyond the Sea.

Joan, leia os termos de uso

Aqui vou me dar ao direito de abusar dos spoilers, querido leitor.

Joan é uma executiva de tecnologia que, um belo dia, descobre que praticamente tudo que fez durante um dia comum foi transformado em uma série de um popular serviço de streaming. O problema é que nesse dia ela viveu situações embaraçosas, para não dizer secretas, que quando relevadas para milhões de pessoas viram sua vida de cabeça para baixo.

Quando ela aciona uma advogada para impedir que isso siga acontecendo descobre que, sim, o tal streaming tinha direito de fazer isso. Estava nos termos de uso – e ela, como nós, não leu. O que a leva a tomar medidas drásticas para se livrar do problema.

Quais são deixo você mesmo descobrir. O importante é dizer que as tecnologias e dilemas éticos e jurídicos que Joan nos traz estão todos nesse episódio. Os termos de uso que nunca lemos, o deep fake que nos assusta, a análise de comportamento do cliente com base em dados e IA, e a computação quântica que trará saltos computacionais que talvez nós mesmos ainda não imaginemos.

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Cena de Joan is Awful. Foto: Reprodução

Também está lá o CEO de Big Tech cheio de ideias tão geniais quanto estapafúrdias – e nenhuma ética.

Há no episódio também uma enorme carga de metalinguagem – afinal, é uma série de um serviço de streaming que critica aberta as possibilidades que, bem, o próprio Netflix poderia ter. Se quisesse.

Será que tem?

No fim, a nova temporada de Black Mirror flerta com novos rumos para o popular programa de TV, mas sem deixar de trazer dilemas que a tecnologia potencializa. E talvez não seja exatamente a mais inspirada das temporadas – recomendo fortemente pelo menos as duas primeiras, caso você viva em Marte e ainda não tenha visto.

Se esse “flop” representa o fim da série, ainda não sabemos. Mas ela segue trazendo reflexões pertinentes sobre o que fazemos com tanta tecnologia.

E também sobre o que é feito conosco.

* Marcelo Gimenes Vieira é editor do IT Forum e nerd de carteirinha