‘Brasil perdeu a oportunidade de ter o melhor sistema de tributação do mundo’, diz Maílson da Nóbrega

Para o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, o excesso de regras diferenciadas incluídas na reforma tributária comprometeu a qualidade da medida aprovada pela Câmara dos Deputados. Em entrevista ao site da Jovem Pan, o economista avaliou que a pressão de setores da indústria para a manutenção de privilégios fez com que o impacto das mudanças no sistema tributário ficasse comprometido. Ainda assim, ele afirma que a aprovação da reforma é de extrema importância para o país. Nóbrega ressalta duas mudanças que considerou prejudiciais para a qualidade da proposta: a concessão de uma alíquota reduzida para vários setores da área de serviços e a criação de uma contribuição para que os Estados possam tributar produtos primários e industriais semielaborados. Em sua avaliação, isso é uma contradição com a própria reforma. Por isso, existe a expectativa de que o Senado Federal elimine as concessões feitas pela Câmara. Maílson ainda observa que diversos setores estão se movimentando para tentar ganhar mesmos benefícios concedidos a alguns segmentos durante a primeira etapa de tramitação da reforma tributária. Ele critica essas exceções, indicando que elas tendem a beneficiar pessoas com maior poder aquisitivo. Confira abaixo os principais trechos da entrevista:

Como você avalia a tramitação da reforma tributária na Câmara dos Deputados? O Brasil perdeu a oportunidade de ter o melhor sistema de tributação do mundo. Se não o melhor, uma dos melhores. Mas isso não vai ser possível, pois houve um excesso de exceções que reduzem a qualidade do projeto. A experiência dos últimos anos mostrou que os IVAs [Imposto sobre Valor Agregado] modernos mais eficientes e que proporcionam mais benefícios para a economia são aqueles que tem uma alíquota única. E aqui vários lobbys lutaram pela preservação de privilégios, conseguiram isenções, alíquotas reduzidas e tudo isso reduz a qualidade da reforma. Mas isso não é capaz de obscurecer a importância da aprovação da reforma. É uma reforma espetacular quando você olha os efeitos na economia e na sociedade. Se tivessem aprovado a PEC 45/2019, como foi proposta, teria 100% de eficiência. Agora vai ser 90% ou 85%. Mesmo assim, é uma mudança para melhor gigantesca, quando se considera o caos atual que impera na tributação do consumo no Brasil.

Quais dessas mudanças devem ter mais impacto na economia e na sociedade? Restaurantes vão ter um tratamento especial. Não tem a menor justificativa, porque os restaurantes são frequentados pelas camadas mais ricas da população. As famílias ricas que vão pagar pelas escolas dos seus filhos nas melhores universidades e colégios, vão levar para os melhores hospitais e tirar férias, tudo isso é o consumo de serviços que vão pagar 40% da alíquota que for estabelecida. Enquanto os segmentos mais pobres quando consumirem bens básicos, como alimentos, vão pagar a alíquota cheia. Isso realmente é um escândalo. Infelizmente, a população brasileira não se deu conta disso. E os lobbys dos serviços usaram vários argumentos papo-furado para convencer a sociedade de que não podia alterar esse privilégio que foi obtido acidentalmente pela área de serviços com a reforma tributária de 1965, porque ela aproveitou incidências tributárias que já existiam nas esferas do governo. Tudo isso em uma época que os serviços não tinham a importância que têm hoje na economia. A sociedade era menos rica do que é hoje.

Alguns dizem que estão tributando a educação. Isso é uma falácia. A educação gratuita continua como ela está e o que está aumentando é o peso que os ricos têm que absorver quando eles usam esses serviços. Então, realmente, para os ricos, vai aumentar as despesas que eles têm com educação, mas não a tributação da educação. A tributação de serviços é paga pelo consumidor e não pelo provedor dos serviços. Não tem nenhuma justificativa de natureza social ou econômico para preservar o privilégio feito para a área de serviços. Mesma coisa com a agricultura, que conseguiu alíquota de 40% também, argumentando benefícios que ocorrem em todo o mundo. Foi um exagero isso. Na Nova Zelândia, que é um país do agronegócio, como o Brasil, não tem diferença de alíquotas, independente de qual seja a atividade. A agricultura já ia se beneficiar da reforma independentemente de alíquotas porque vai haver a desoneração integral da exportação. Também vai se beneficiar do crédito que vem da compra de insumos, como fertilizantes. A alíquota reduzida é apenas um privilégio.

Outra discussão é sobre qual será a alíquota do imposto. Qual é a sua estimativa? O argumento que muitas pessoas têm levantado é que deveria ser colocada uma alíquota já. Tem dois fatores que desautorizam esse tipo de pensamento. O primeiro é que a Constituição não é lugar para colocar alíquota de tributos. Canto nenhum do mundo, nem no Brasil, é assim. Segundo lugar é porque não se sabe qual é a alíquota. Não tem quem consiga dizer porque é um sistema complexo, caótico e muito confuso. Existem estimativas feitas pelo grupo de trabalho da reforma que a tributação de consumo hoje equivale a 24,3%. Por isso, se falou que a alíquota deve ficar em torno de 25%. Mas isso só será determinado depois de um recenseamento, um censo em que durante um ano se cobrará uma alíquota de 1%, sendo 0,1% do governo federal e 0,9% dos Estados e municípios, para gerar o volume de informações que determinarão a alíquota. Nem na Lei Complementar é apropriado colocar. Ela pode muito bem ser objeto de outro nível de decisão. Mesmo que seja na Lei Complementar, tudo bem, mas não na Constituição. Mas não tem como saber hoje. Por isso, que a reforma prevê que durante um ano será esse período de teste, só depois saberemos a alíquota. O nível de 28% calculado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) é uma simulação considerando essas informações anteriores e a estrutura que foi determinada na reforma, sobretudo os privilégios concedidos. Mas deve ser por aí, 27% ou 28%. É um chute. Acho difícil que seja os 30% ou 33%, como muitos têm dito. Mas certamente será mais de 25%.

Como você avalia a condução da aprovação na Câmara dos Deputados? Existem algumas figuras-chave nessa reforma. Na Câmara, são duas. O Arthur Lira, que comprou a ideia e entendeu a importância dela, como beneficiaria o país e assumiu a liderança de negociar a proposta. Sempre achei que esse papel deveria ter sido do presidente Lula, mas ele se afastou da reforma para não se indispor com os grupos de interesse que estavam procurando benefícios. O Lira inclusive, no momento da votação, fez um gesto raro, que é o presidente da Câmara descer do púlpito e falar na tribuna de um deputado comum, defendendo enfaticamente a reforma. Acho que isso mudou alguns votos. [Outra figura-chave foi] O deputado Aguinaldo Ribeiro, que foi o relator. Ele fez um trabalho extraordinário, mergulhou no assunto, passou a entender de tudo dessa reforma e ter autoridade para falar dos assuntos envolvidos. O relatório dele foi fundamental. Outra figura relevante foi o Bernard Appy, que não só é um dos líderes do grupo que preparou o projeto no Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), mas se dedicou à tarefa de municiar os parlamentares de informações sobre a proposta com paciência, técnica e conhecimento, além de assessorar o governo nas negociações. Ele foi um batalhador incansável dessa reforma e a isso o país muito lhe deve.

Não podemos esquecer da participação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que foi importante na negociação e se convenceu junto aos outros que se lutasse pelo melhor, poderia não passar. Que a força dos lobbys que tem interesses a defender era muito forte. Eles conseguiram vender o peixe deles no Congresso e a ideia foi de preservar o melhor e ceder as questões com efeitos negativos menos importantes. Valeu a pena, porque a estrutura da tributação continuou, isso vai significar a plena eliminação da cascata, da cumulatividade, que é um fator que diminui a eficiência e a competitividade da economia brasileira. O que esperamos agora, que é mais um sonho do que qualquer outra coisa, é que o Senado possa despachar muitos desses privilégios que não se justificam e resistir à inclusão de novos. E, sobretudo, rejeitar a criação dessa contribuição que os Estados e municípios poderão fazer para arrecadar recursos na agropecuária e nos produtos semielaborados.