Cidades agressivas geram população em constante sofrimento

A qualidade de vida urbana é um conceito multidimensional, construído a partir dos contextos sociais, econômicos, culturais, históricos e morais influenciando na organização dos modos de vida social e nos comportamentos adotados pelos indivíduos nos espaços urbanos de uso e compartilhamento público. Normas de convívio social foram historicamente instituídas. Quer legalmente, quer internalizadas pelo aprendizado a partir do outro, todas tem em comum a orientação e o disciplinamento da convivência buscando, pelo respeito ao direito do outro, a civilidade. Não posso fazer tudo o que me vem à cabeça, certo? Em especial se coloco em risco ou incomodo o outro. A cidade é pública. Infelizmente, não é o que está ocorrendo nas grandes cidades brasileiras. Falta civilidade. Falta empatia. Seres humanos são seres sociais, vivem em grupos e precisam do outro para sobreviver. Situações que incomodam, atrapalham, restringem ou impedem o uso social dos espaços urbanos pelo coletivo, inviabilizam a esfera de vida pública causando não apenas frustrações, mas riscos e perdas materiais aos cidadãos. Impactam na qualidade de vida e na saúde coletiva. 

Aproximadamente 85% dos brasileiros moram em cidades (PNAD 2015) alcançando, no caso da região sudeste do país, a espantosa marca de 93% da população (IBGE 2020). São aproximadamente 90 milhões de pessoas que convivem e compartilham calçadas, praças, parques, jardins, ruas, rios e demais espaços livres públicos. Como podemos manter uma convivência civilizada e pacífica quando a prefeitura predominantemente, estado e união, responsáveis pelas políticas de planejamento, projeto, implantação, gestão e manutenção dos espaços de uso público não faz a sua parte, deixando a população praticamente à própria sorte? A privatização da gestão por empresas parece ter sido a solução encontrada para a zeladoria dos espaços públicos. Instrumentos? Parceiras público-privadas de qualquer prestação pública de serviços. 

Estudos provenientes da literatura médica apontam transtornos mentais menores que, diferentemente dos diagnósticos de depressão e ansiedade (Classificação Internacional de Doenças – CID) corroem vagarosamente nossos corpos e mentes por meio do esquecimento, irritabilidade, dificuldade de concentração, cansaço, fadiga, insônia, cefaleias, sintomas gastrointestinais, falta de apetite, entre outros sintomas, que pode ser descrito como um sofrimento psíquico profundo. Como não desenvolver transtornos mentais, mesmo que leves, diante de ambientes urbanos tão complexos e com tantos estímulos estressores crônicos? Tristeza, desesperança, sensação de abandono institucional, frustração, raiva são alguns dos sentimentos que mais percebo nas falas do cidadão comum em ônibus, no metrô, nas ruas. O que mais escuto é: “não tem o que fazer”, “os caras só olham o próprio bolso” referindo-se aos políticos em geral. 

Saúde mental pública é parte integrante do que convencionamos chamar de qualidade de vida urbana que, por sua vez, depende da percepção que indivíduos e grupos têm de sua posição no mundo relacionando-o às expectativas, à realização de seus objetivos e às soluções para suas preocupações. Ir às ruas para ver pessoas em cadeira de rodas andando no meio da avenida porque as calçadas estão ocupadas por mesas e cadeiras de restaurantes e bares é cruel. Indigno. Inominável. Assistir vereadores incentivando “a vida pública” promovida por bares e restaurantes sobre áreas de calçadas estreitas não tem sentido algum para o direito de mobilidade do cidadão comum. Ainda pior, vê-los legislando em favor da iniciativa privada em detrimento do respeito à dignidade do cidadão. Fiscalizar? Multam num dia e no outro, tudo igual: pessoas e empresas apropriam-se do espaço público novamente cientes da punição eventual. Outro exemplo? Somos bombardeados diariamente com informações sobre deslizamentos em áreas de risco que levam à morte crianças, mães e pais que moram nas condições que prefeituras, estados e união lhes oferecem para a sua condição econômica: praticamente nenhuma. É impossível normalizar perdas e mortes de seres humanos quando causada pela ausência completa e inoperância dos entes federativos.

Explicações institucionais são várias. Conheço-as todas. Se de um lado faltam campanhas educativas públicas com o objetivo de orientar o público geral sobre as formas mais apropriadas de uso e ocupação de áreas públicas que buscam uma boa convivência social, por outro temos as queixas provenientes do corpo técnico municipal que, pela falta de recursos materiais (viaturas, combustíveis, ferramentas de trabalho etc.) e de mão-de-obra especializada, físicos (infraestrutura) e humanos (profissionais qualificados) histórica, impedem a fiscalização e a aplicação de penalidades existentes na lei em todo o território urbano. Graças à situação de inoperância do poder público em fiscalizar aspectos já regulamentados por lei, tanto estabelecimentos comerciais quanto condomínios e munícipes agem a seu bel prazer, guiados pela conveniência, apropriando-se dos lugares públicos para tirar proveito máximo diante da ausência de punição à ilegalidade praticada. “Terra de ninguém” é a expressão que me vem à mente. Ou ainda, “terra do primeiro que dela se apropriar” talvez soe mais adequado e retrate a condição em que cidadãos, empresas e instituições compartilham os espaços públicos urbanos.

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