Se depender da ANTT, o pobre não vai andar nem de ônibus

Na última campanha, Lula prometeu que se fosse eleito o pobre voltaria a andar de avião. Mas com os preços nas alturas, o pobre certamente agradeceria se pudesse ter a opção de andar de ônibus. Às vésperas das festas de fim de ano, porém, o eleitor de Lula corre o risco de não conseguir nem mesmo visitar a família. Neste ano, o preço das passagens de rotas interestaduais subiu em média 11% em relação a 2022, ou seja, bem acima da inflação. E deve aumentar ainda mais, por dois fatores: o veto de Lula à desoneração da Folha, que atinge em cheio o setor de transporte coletivo; e o novo marco regulatório a ser aprovado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres, que congela a abertura do mercado de transporte interestadual e privilegia o oligopólio que domina o setor há décadas. É incompreensível que um governo que se propõe sensível às demandas dos menos favorecidas se renda ao poder  do capital de grandes grupos econômicos – ou já vimos isso antes?

O fato é que a ANTT deve levar a proposta à votação nos próximos dias e, se nada for feito, ajudará a profundar as desigualdades sociais já abissais no país. Transporte rodoviário barato é sinônimo de acesso a serviços essenciais, como educação, saúde e ao próprio trabalho, além de ser uma enorme alavanca na promoção do turismo nacional, ou seja, gerando mais empregos. Em agosto, o Ministério Público Federal se manifestou contra a proposta da ANTT que limita rotas, serviços e tarifas.  Em ofício, a procuradora Ana Carolina Garcia afirmou que será criada uma barreira para a entrada de novos concorrentes, o que cria na prática “uma reserva de mercado incompatível com o regime de autorização”, instituído na gestão Dilma Rousseff e aprofundado no governo de Jair Bolsonaro. Segundo a procuradora, “o usuário fica no pior dos mundos, sem opção de escolha nos mercados principais, sem garantia de prestação do serviço nos mercados secundários e obrigado a pagar o valor fixado livremente pelo operador”, ou seja, pelas companhias que controla o setor há décadas.

Vale ressaltar que, em 2019, o então ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, liberou autorização para 14 mil novas linhas no país, muitas delas na região Norte e Nordeste, onde há uma enorme demanda reprimida. Logo depois, em 2020, o TCU, pelas mãos do ministro Bruno Dantas, suspendeu as autorizações. A Associação Nacional de Empresas de Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros (Anatrip) recorreu ao Supremo, que acabou por validar a constitucionalidade do regime de autorização simples, sem necessidade de licitação prévia, portanto, muito mais ágil e democrático que as famigeradas outorgas. A ANTT, porém, fez ouvidos moucos e tenta driblar o STF com o marco regulatório.

Na prática, a ANTT quer liberar as autorizações sem limites apenas nos mercados secundários, sem grande demanda ou operador, restringindo o acesso aos mercados principais, que respondem por 70% de toda a movimentação de um setor que movimenta 30 bilhões de reais e transporta 100 milhões de passageiros anuais. Segundo a proposta da agência, as principais rotas só podem ser ampliadas em 20% por ano, o que, na prática significa, significa permitir a entrada de apenas 1 novo operador a cada 12 meses. O contrário justamente do que preconiza nota técnica da Subsecretaria de Regulação e Concorrência do Ministério da Fazenda, segundo a qual “a concorrência pode levar benefícios para os consumidores, como tarifas mais baixas, melhoria da qualidade dos serviços, adoção de inovações tecnológicas e oferta de benefícios adicionais”.