Com invasão no Catar, festa no Obelisco e vovó da sorte, torcida da Argentina é a sensação da Copa

Na véspera do confronto entre Argentina e Holanda, pelas quartas de final da Copa do Mundo, milhares de pessoas fora às ruas vestindo azul e branco e cantando como se estivessem no estádio. Um bumbo acompanhava a cantoria e anestesiava a polícia local, completamente sem reação diante da turba. O detalhe é que a cena descrita não se passou nas imediações do Obelisco ou qualquer outro ponto de Buenos Aires, mas no centro de Doha. A cada dia, a invasão alviceleste no Catar aumenta com a chegada de voos repletos de torcedores, a maioria sem ingresso. Até mesmo os brasileiros admitem: os hermanos deram um show à parte no Mundial. “É impressionante, parece que eles estão em casa, não do outro lado do oceano. É uma festa infernal, dentro ou fora do estádio. Vi todos os jogos da Seleção Brasileira e o da Argentina contra a Austrália. Os caras são diferentes. Cantam, vibram, parecem torcida de clube. A nossa, infelizmente, deixou a desejar”, testemunhou o social media Aquino Rosalini, já de volta ao Brasil após a eliminação nas quartas.

O governo local estima que pelo menos 40 mil argentinos viajaram ao rico país do Oriente Médio. Há, claro, muitos de classes abastadas, mas alguns venderam seus bens mais valiosos para ver Messi in loco. O país vive crise econômica, com inflação de 92,4% ao ano e moeda totalmente desvalorizada ante o dólar (1 peso vale US$ 0,0058). Para economizar em um dos locais mais caros do mundo, eles dividem quartos mais baratos que albergues e comem somente uma vez por dia. “Há locais de alimentação acessíveis, basta procurá-los”, disse um torcedor ao jornal “La Nación”.

Segundo a Fifa, a Argentina é o país sul-americano que mais comprou ingressos para o Mundial (pouco mais de 60 mil), o sétimo no geral. “Vamos jogar em casa”, celebrou o goleiro Martínez. Quem ainda não garantiu sua entrada tenta pressionar os dirigentes da Associação Argentina de Futebol (AFA). Há três dias, centenas de torcedores estão acampados em frente ao hotel onde se hospedaram os cartolas do país e exigem a distribuição de entradas. Eles alegam que a federação marroquina fez isso pelos seus. “O que queremos é ter ingresso por preço oficial. Estão revendendo a US$ 5 mil. Isso é muito para nós que estamos aqui desde o início. Não pedimos nada demais, só queremos torcer mais uma vez pela Argentina”, disse uma torcedora à AFP. “Sabemos que há entradas à disposição. Não pedimos mais que o apoio da AFA”, declarou outra.

Essa espécie de “loucura coletiva” foi causada por um sentimento inabalável de que a Argentina conquistará a Copa do Mundo após 36 anos. Nem a derrota para a Arábia Saudita, na estreia, abalou o sonho do tri. No jogo seguinte, diante do México, lá estava a “barra” alviceleste cantando as músicas que entram na cabeça até de quem nasceu bem longe das fronteiras de Buenos Aires. A mais famosa é uma adaptação de “Muchachos, Esta Noche me Emborracho” (Rapazes, esta noite eu me embebedo), da banda La Mosca Tsé Tsé, que mistura ritmos como ska, merengue, cumbia e rock alternativo. No gogó dos “hinchas”, virou “Muchachos, Ahora nos Volvimos a Ilusionar (Rapazes, agora nós voltamos a sonhar). Famoso nas arquibancadas do Cilindro, estádio do Racing, a versão seleção nacional exalta Messi e Maradona, lembra da Guerra das Malvinas e provoca a Seleção Brasileira.

En Argentina nací (Na Argentina eu nasci)Tierra del Diego y Lionel (Terra de Diego e Lionel)De los pibes de Malvinas (Dos meninos das Malvinas)Que jamás olvidaré (Que jamais esquecerei)
No te lo puedo explicar (Não sei explicar)Porque no vas a entender (Porque não vai entender)Las finales que perdimos (As finais que perdemos)Cuantos años la lloré (Quantos anos as chorei)
Pero eso se terminó (Mas isso teve um fim)Porque en el Maracaná (Porque no Maracanã)La final con los brazucas (Na final com os “brasucas”)La volvió a ganar papá (Voltou a ganhar o papai)
Muchachos, ahora nos volvimos a ilusionar (Rapazes, agora voltamos a sonhar)Quiero ganar la tercera (Quero ganhar a terceira)Quiero ser campeón mundial (Quero ser campeão mundial)
Y al Diego (E o Diego)Desde el cielo lo podemos ver (Do céu podemos vê-lo)Con Don Diego y La Tota (Com Diego e Tota*)Alentándolo a Lionel (Apoiando Lionel)
*Nota: Tota é a mãe de Maradona, morta em 2011

Veja o clipe de “Muchachos, Ahora nos Volvimos a Ilusionar”

‘Vovó da sorte’, casal do semáforo e multidão no Obelisco

A mais de 13 mil quilômetros de Doha, uma música mais singela também ganhou as redes. Após a vitória sobre a Polônia, um grupo de amigos do bairro de Liniers, na zona oeste de Buenos Aires, viu se juntar à comemoração uma simpática senhora que carregava uma bandeira da Argentina com as duas mãos. De improviso, entoaram versos que viraram hit no Mundial: “Abuela, lalalalala” (abuela significa avó em espanhol). A popularidade de Cristina, a “Avó de Liniers”, foi crescendo à medida que a seleção avançava na competição. Na terça-feira, contra a Croácia, a junção das ruas Caaguazú e Andalgalá ficou lotada de fãs que queriam ver de perto o amuleto do time de Scaloni no Mundial.

Entrevista pelo canal TN, Cristina revelou que torce pelo Boca Juniors, não tem filhos — apenas sobrinhos — e não assiste aos jogos da Argentina devido ao nervosismo. O carinhoso apelido não a incomoda. “Não me incomoda que me chamem de vovó, em todos os lugares me chamam assim. Desde a pandemia não pinto mais o cabelo”, justificou. Seu sucesso fez até a Fifa replicar o já famoso “Abuela, lalalalala”. No Google Maps, é este o termo que aparece para quem procura o cruzamento da Caaguazú e Andalgalá.

Nas imediações do Obelisco, tradicional ponto turístico de Buenos Aires, as ruas ficaram intransitáveis após as vitórias da Argentina — sobretudo no 3 a 0 sobre a Croácia, que colocou o time de Messi na decisão. Com tanta gente abarrotada no chão, alguns se arriscaram em cima de estações de ônibus para celebrar. Em La Plata, o local escolhido para uma inusitada celebração foi o semáforo. Ficou famosa uma foto de um homem e uma mulher se beijando apaixonadamente. Nas redes sociais, a maioria apostou que se tratava de um casal de longa data, mas Violeta (nome usado no Twitter), a garota da foto, se apresentou e explicou: “Ele me olha como se fôssemos namorados. O pior é que eu o conheci no semáforo”. Era só a euforia pelo sonho do tri.

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