Com roteiro que beira a genialidade, ‘Aprisionados’ é um filme a ser garimpado

Esta semana esbarrei em um ótimo filme, assim, sem querer. Depois que minha esposa assinou mais um serviço de streaming em meu cartão de crédito ‒ obviamente, sem minha permissão prévia, fica aqui meu protesto público ‒, resolvi aceitar minha condição servil e usufruir, já que não tinha outra opção, do novo canal, Looke. Lá estava, logo na primeira tela, o filme “Aprisionados” (Foglyok, no original), trata-se de uma produção húngara de Kristóf Deák. Prometia pouco pela sinopse, é verdade, mas como estava em busca de um filme diferente para aquela morosa tarde de domingo, cliquei no play. O filme se passa em 1951, durante o regime comunista na Hungria. Certo dia, a Polícia Secreta do Estado bate à porta da família Gaáls em busca de um tal Gyula Michnyay, homem que teria a missão de ajudar o irmão de Sara Friedman e Ilona Gaál (protagonistas) a mandar a sua filha Eszti para a Berlim Ocidental, local para onde tinha ido a trabalho e pretendia desertar. O filme relata o costumeiro método adotado pela polícia de Estado comunista naquele país: confinar as pessoas em prisão domiciliar sem a possibilidade mínima de contato exterior.

O ambiente de tensão constante é o tom da tática policialesca e deixa que a expectativa de um interrogatório mais cruel, ou de prisão federal, esteja tão à vista que se torne quase palpável. A promessa de Michnyay de buscar a filha do irmão de Sara e Ilona é a informação que prende os policiais à casa e, por isso, todos que batem à porta, seja para saberem o que está ocorrendo, como o síndico curioso e a vizinha prestativa; o marido da vizinha ‒ um procurador ‒ em busca da esposa ausente; o assistente do marido-procurador, na busca de informações ante o seu sumiço; uma inquilina esotérica dos Gaáls; uma amiga de família que levou algumas frutas e legumes à Ilona; o namorado de Sara… todos que ousam bater à porta da casa se tornam suspeitos e são presos no domicílio. Diante desse pitoresco cenário, o filme passa sobre um fundo musical que dá à obra um tom satírico, o absurdo que acompanha as sanhas ditatoriais do Estado vertem-se de tensão a cenas de humor requintado e melodramático. Um dos agentes, um grandalhão de seus 1,90 m de altura, aos poucos, começa a criar laços de amizades com os sobrinhos de Sara, e, em certo momento, entediado de manter sua postura dura de policial comunista do Leste Europeu, vai jogar cartas com os homens da casa.

A sutileza sofisticada com que o roteiro ridiculariza o método comunista de investigação é sensacional, um filme que iniciei esperando certa aflição e revolta, aos poucos se tornou uma comédia dramática e fina, muito bem construída. Não só denuncia a ineficiência do modo de investigação daquele Estado autoritário, sua massificação do que é mais íntimo nos indivíduos, as suas privacidades mais viscerais, deixando claro que tudo é do Estado – suas casas, particularidades, quartos, banheiros, tudo-, como também mostra a contínua corrosão das fidelidades dos cidadãos à ideologia oficial ante os avanços abusivos da máquina estatal esquerdista. Sara chega à casa da irmã como fiel servidora comunista, e sai como cética desencantada; a cena final da obra trata-se da casa sendo abandonada pelos agentes após notarem que não conseguiriam ali achar Michnyay.

Todos os prisioneiros estão na porta do apartamento sem saber se devem ou não sair, apenas o menino ‒ filho de Ilona ‒ sai correndo em tom de brincadeira, se volta a todos os adultos e diz: “Vocês não vão sair”? Uma pergunta que ressoa não só aos reféns daquela casa vertida em prisão, mas simbolicamente às suas consciências e dos demais vizinhos curiosos que os cercavam: “E aí, vão continuar sob esse regime ou ousarão sair dessa prisão”? Um roteiro que beira a genialidade simbólica, assisti duas vezes e recomendo a todos que encontro por aí. Por fim, olha como são as coisas, agradeci a assinatura indevida da minha esposa ‒ ou talvez, é claro, esteja apenas justificando sua rebeldia com cartão alheio e minha subserviência marital ‒. Esse é um daqueles bons filmes que estão escondidos à espera de serem garimpados. Anotem então,“Aprisionados”, depois me digam o que acharam.