Cracatá existe? Cidade de ‘Cangaço Novo’ pode não estar no mapa, mas é facilmente reconhecida por quem conhece o sertão

Distraída com as conversas das pessoas no vagão do metrô, fui surpreendida com a frase: “Se Deus quiser, vou a Cracatá conhecer o lugar”. “Como assim? A cidade de Cracatá não existe. É ficção”. Não desci na estação. Queria saber mais do final da conversa. Continuei o trajeto com eles, escutando com atenção. Ele estava comentando para o amigo algumas cenas sobre série recém-assistida. Lembrava-se da pele queimando sob o sol, da casa humilde da família que, por anos, abrigou muitos filhos, do roçado plantado para matar a fome de todos e que continuava esquecido pelos santos. Apesar de venerados em romarias, os santos não ajudavam. A colheita não prosperava de jeito nenhum. “O povo sofrido lá do meio do sertão só sabe sofrer. Bandidagem rola solta, sempre rolou… Do ‘coroné’, do político safado, ao cangaceiro. É assim onde nasci”.  

Referiam-se à série “Cangaço Novo”, produção brasileira do Prime Video que estreou em meados de agosto. Criada por Mariana Bardan e Eduardo Melo, que também escreveram os roteiros com Erez Milgron e Fernando Garrido, roteirista chefe, foi dirigida por Fábio Mendonça e Aly Muritiba. “Acertaram em cheio”, pensei ao descer duas estações adiante. A maneira como a história foi contada, utilizando elementos visuais, auditivos e narrativos para criar uma experiência coerente e envolvente para com o público, surtiu o efeito desejado. Para os dois amigos que conversavam no vagão, a narrativa, as interações e o cenário levaram a uma “experiência imersiva”, impactando-os de tal forma que ficção e realidade não se distinguiram.

Para quem ainda não assistiu, a série aborda uma narrativa de autodescoberta, explorando temas familiares, culturais e históricos no Nordeste e no contexto do cangaço. Um verdadeiro Nordestern. O roteiro foi estruturado de forma orgânica, evitando uma linearidade simples, buscando uma trama mais complexa e com várias camadas. Cada personagem tem sua história, seus dramas. Todas elas se misturam na trama. A intenção era criar uma narrativa envolvente e emocionante, estimulando a reflexão do público, prestando uma homenagem ao cangaço e, ao mesmo tempo, oferecendo uma perspectiva crítica sobre esse período histórico. É um tema político, forte e atual. É uma estrutura de roteiro muito elegante, afirma o crítico Pablo Villaça na entrevista exclusiva com os roteiristas de “Cangaço Novo” no seu canal do YouTube.

Cracatá é uma cidade de várias cidades. Os cenários utilizados para a representação dos espaços geográficos que colaboraram para a construção da sua identidade foram filmados em Campina Grande, Queimadas, Pocinhos, Lajedo de Pai Mateus, Conde, Puxinanã, São Domingos do Cariri, Carnaúba dos Dantas e Parelhas. Lugares geográficos que, com uma história bem contada, transformaram-se em espaços de interação dos espectadores e personagens da trama. Em seu ensaio “A linguagem Cinematográfica” (1958), o crítico de cinema francês André Bazin usou a expressão “geografias do cinema” para se referir à maneira como a sétima arte representa o espaço geográfico, argumentando que é um meio capaz de capturar a essência de um lugar, através da sua luz, sua arquitetura, sua topografia e seus habitantes.

Trata-se de um encontro entre as imagens, os sons cinematográficos e o que existe dentro de cada espectador, desencadeando, por meio de movimentos imaginativos, interpretações, lembranças, sensações e experiência únicas. Mais do que o lugar geográfico, o roteiro explorou as relações entre as pessoas, as instituições e as práticas sociais e culturais do cangaço, criando uma atmosfera envolvente e sugestiva, levando o espectador a se conectar com o lugar, mesmo que imaginário, de uma forma mais pessoal e significativa.

Ao explorar as lembranças do cangaço tradicional liderado por Lampião no início do século XX, que envolvia saques e crimes como resposta ao coronelismo e às injustiças sociais no Nordeste, mesclando-as às características do “neocangaço” — com grupos criminosos que invadem cidades com falta de efetivo policial, assaltam bancos e carros-fortes, e que frequentemente resultam em confrontos violentos e mortes —, a série levou o espectador a identificar-se com as situações sociais ainda presentes no cotidiano de vida do lugar. Cracatá existe, sim. 

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