Dia Nacional da Pessoa com Deficiência: para além das cotas, empresas precisam ter intencionalidade na contratação

Katya Hemelrijk, CEO da consultoria Talento Incluir

Passados mais de 30 anos da Lei de Cotas, Katya Hemelrijk, CEO da Talento Incluir, avalia que houve muitos avanços, mas ainda há muito a ser feito. Para se ter uma ideia, dados do IBGE (PNAD 2022) mostram que o País tem 17,3 milhões de pessoas com deficiência, o que representa 8,4% da população. Destas, 9 milhões estão aptas para o trabalho, mas somente 590 mil estão empregadas, como registra a RAIS 2022.

No Dia Nacional da Pessoa com Deficiência, Katya avalia que ainda que exista inclusão dos profissionais, principalmente em decorrência da legislação, as empresas precisam ir além das cotas e contratar os profissionais com intencionalidade. “As empresas erram contratando para vaga PCD, e não olhando para o perfil da pessoa para dar a vaga certa. As empresas têm um número para ser atingido e saem contratando desesperadamente pessoas com deficiência, inventando e criando vagas sem oferecer a possibilidade de crescimento e desenvolvimento para os profissionais”, afirma.

Com mais de 20 anos de carreira, Katya é formada em Administração de Empresas, tem especialização em Neurociência do Consumo e é certificada como Coach Internacional pelo ICC. É uma mulher com deficiência, que nasceu com a Osteogênese Imperfeita. A executiva atuou por 12 anos como líder de comunicação na Natura e também é palestrante, atriz e coautora do livro “Maria de Rodas”. Veja os principais trechos da entrevista a seguir.

IT Forum – A Lei de Cotas para pessoas com deficiência completou 33 anos no último mês de julho. De acordo com os dados mencionados acima, 9 milhões de pessoas com deficiência estão aptas para o trabalho, mas somente 590 mil estão empregadas. Diante desses números é possível dizer que tivemos avanços nas últimas três décadas?

Katya Hemelrijk – Sim, avançamos um monte. Se não tivesse a Lei de Cotas, a gente não estaria aqui falando sobre isso. Eu tenho deficiência desde que nasci, então passei por esse processo de me entender como pessoa com deficiência no mercado de trabalho, entender o impacto da legislação e, sim, ela é muito, muito necessária, apesar de a gente trabalhar todo dia para que ela não exista mais. Por isso, eu acordo todo dia de manhã dizendo: ‘Hoje eu termino um pouquinho mais com a Lei de Cotas’. A gente vai tirando ela do nosso dia, até que um dia a gente consiga não precisar mais dela. Porém, ela é muito necessária para que a gente consiga manter o tema em evidência. Principalmente neste momento que vivemos, com muita influência dos Estados Unidos, do movimento anti-woke, que quer desacelerar os temas de diversidade e inclusão.

IT Forum – Você destacaria alguma ação, momento ou fato histórico em especial nessas três décadas que tenha influenciado as empresas a incluírem mais pessoas com deficiência?

Katya Hemelrijk – Diferentemente de outros marcadores sociais, nunca tivemos um marco para pessoa com deficiência. Eu brinco que o grupo de pessoas com deficiência é o único que não tem orgulho de ser quem é, diferente do orgulho de ser mulher, de pertencer ao LGBTQIAP+ ou movimento de pessoas negras. A não ser em 2006, na ONU, quando tivemos uma intervenção de pessoas com e sem deficiência defendendo uma terminologia mais atualizada: passamos de pessoas com necessidades especiais e portadores de deficiência para pessoa com deficiência. Esta foi a primeira vez que o ser humano veio em primeiro lugar, antes da deficiência. Na ocasião, fortalecemos o lema “nada sobre nós sem nós” e este forte movimento do “nada sobre nós sem nós” serve inclusive para que empresas não façam algo por nós sem nos perguntar se faz sentido ou não. Envolver a gente na conversa faz com que as coisas fiquem mais fáceis e mais assertivas para todo mundo. Acredito que 2006 foi de fato emblemático e fortalecemos o que foi definido lá todos os dias. Além disso, temos todas as legislações que vieram por conta da Lei de Cotas, como a Lei de Acessibilidade e a inclusão de pessoas neurodivergentes na Lei de Cotas. Fomos ganhando espaço e visibilidade a partir desse movimento que esta lei proporcionou.

IT Forum – Na sua opinião, qual é a grande dificuldade das empresas na hora de contratar pessoas com deficiência?

Katya Hemelrijk – Na minha opinião, a dificuldade que elas têm é diferente da dificuldade que elas acham que têm. A dificuldade que elas dizem ter é a de não encontrar pessoas capacitadas, que as pessoas com deficiência não se candidatam às vagas, que a liderança não colabora. Na nossa percepção, do lado de cá, é que as pessoas se apoiam nessas crenças para dizer que não conseguem contratar, pois existem pessoas qualificadas ainda que sejam poucas. Assim como existem pessoas com deficiência em lugares em que as empresas não chegam. Então, é vontade de procurar, é a intencionalidade.

Por aqui, quando temos vaga aberta em uma cidade menor, mais distante ou em comunidade, usamos de artifícios criativos para chegar nas pessoas que não têm acesso, um exemplo é que já fizemos até parceria com o pároco da igreja local. As empresas quando trabalham em uma vaga sem apoio de uma consultoria com esse propósito acabam não fazendo isso.

Elas vão no padrão: usam o LinkedIn e ferramentas de busca padrão. Hoje, com a inteligência artificial, a gente sai do jogo porque ela não está treinada para nos considerar nessa busca. Portanto, as empresas vivem uma bolha de crenças que são fortalecidas a cada dificuldade que elas encontram, enquanto, por outro lado, existe uma gama enorme de talentos que poderiam ser contratados.

IT Forum – Um estudo da Talento Incluir revela que 49,8% dos participantes possuem ensino superior completo, destes 24% têm pós-graduação, MBA, mestrado ou doutorado. Por outro lado, apenas 2,6% ocuparam cargos de gestão e 2,1% de supervisão no último emprego. Onde as empresas estão errando?

Katya Hemelrijk – Na minha perspectiva as empresas erram contratando para vaga PCD, e não olhando para o perfil da pessoa para dar a vaga certa e o lugar certo. As empresas têm um número para ser atingido porque existe uma meta em decorrência da legislação, assim elas saem contratando desesperadamente pessoas com deficiência, inventando e criando vagas e oportunidades e acabam deixando essas pessoas sem a possibilidade de crescer e se desenvolver. Por outro lado, há pessoas com deficiência que mesmo muito qualificadas se calam pelo medo de perder aquele mínimo salário que elas ganham.

IT Forum – Você tem exemplos?

Katya Hemelrijk – Uma vez eu fui a uma empresa e conversei com um rapaz surdo. Ele tinha um MBA, uma qualificação incrível, mas ele estava trabalhando em turno noturno em uma fábrica, na linha de produção, ele não era supervisor. Eu perguntei o que fazia ele ficar ali. E ele respondeu: ‘três filhos para criar, colocar comida na mesa’. E disse que não podia correr o risco de falar que era mais qualificado para vaga que estava ocupando. Então, temos muita gente com deficiência que se cala e muita falta de oportunidade nas organizações, falta olhar para essa população. E isso é uma roda.

Se eu tenho uma pessoa com deficiência na liderança, a chance de trazer outras pessoas com deficiência para o time, desenvolver e apostar é muito maior. Quando não tenho, a gente tem que fazer um esforço muito grande, para que isso aconteça, eu tenho que estudar e provar minha capacidade duas, três vezes mais, isso quando temos abertura e possibilidade para falar, pois grande parte das vezes não temos.

Temos dados de pessoas com deficiência trabalhando há mais de 10 em companhias e que nunca foram promovidas, caso de 60% desses profissionais. Além disso, 49% deles nunca tiveram a oportunidade de fazer um treinamento dentro das organizações em que trabalham. Existe uma negligência das empresas, é preciso investir nesse público.

IT Forum – Alguma tendência de mudança?

Katya Hemelrijk – Nos últimos tempos, temos visto algumas mudanças com empresas fazendo mentorias específicas para pessoas com deficiência. Estive em um evento de uma empresa focado em pessoas com deficiência na liderança. Essa empresa tem 3% de pessoas com deficiência que trabalham em cargos de liderança e 6% de colaboradores com deficiência na organização, ou seja, metade na liderança. É um sonho, pois isso é muito fora da curva.

IT Forum – Ao longo da sua trajetória profissional, como você avalia a incorporação de tecnologias para ajudar na inclusão da pessoa com deficiência dentro das empresas?

Katya Hemelrijk –
A tecnologia é essencial para inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. Se a gente não tivesse os avanços na tecnologia, muita gente ainda estaria fora do mercado. As tecnologias assistivas, como leitores de tela, lupas eletrônicas, o teclado com letras maiores, aplicativos. E, não só para o trabalho, mas para que as pessoas socializem, vivam e consumam da melhor forma possível. Também temos próteses, aparelhos auditivos e cadeiras de rodas melhores, o que faz com que tenhamos mais autonomia e independência. O ponto é que essa tecnologia ainda é muito cara. Assim, se tem uma população com deficiência que não trabalha, o acesso a essa tecnologia é mais restrito, ou ele vem incentivado pelas organizações ou você vem de um lugar de muito privilégio financeiro e consegue ter acesso. Mas a grande maioria ainda tem pouco acesso a essas tecnologias.

IT Forum – E as empresas têm investido mais nessas tecnologias?

Katya Hemelrijk –
As empresas têm a preocupação de ter o consumidor com deficiência comprando sua marca. Então, vemos em bancos, centrais de atendimento preocupadas com a tecnologia, principalmente para acessibilidade digital. Também vemos as empresas olhando para benefícios exclusivos para pessoas com deficiência. Há empresas, por exemplo, que você tem um valor anual que você pode usar para comprar tecnologias para facilitar a sua vida, mas são poucas ainda. Eu brinco que estou sentada em cima de 30 mil reais, pois minha cadeira é muito cara. Porém, é isso que me permite ficar até 16 horas ‘no ar’ por dia.

IT Forum – Pensando no outro lado da tecnologia, você comentou sobre como a IA não está ainda preparada, pois ela segue um padrão. Você se refere aos processos de recrutamento?

Katya Hemelrijk – A Inteligência Artificial é alimentada pelo ser humano de uma sociedade que ainda é capacitista, racista, machista. Quando há prompts que são desenhados e construídos por pessoas que têm seus vieses, vamos continuar selecionando pessoas que selecionaríamos sem as Inteligência Artificial. A Inteligência Artificial ainda dificulta que a diversidade esteja presente nos processos de seleção. A gente precisa de muita intencionalidade para trazer a diversidade para dentro de casa. Na verdade, não adianta só trazer para dentro de casa, também tem que incluir. Mas ainda há o desafio de selecionar com intencionalidade. A inteligência artificial não vai fazer essa seleção intencional ainda.

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