O longo fim do Twitter: selo azul, emoji de cocô e os bastidores do negócio

Aproveite: você pode estar vivendo os últimos dias do Twitter, nada menos que umas das mais importantes plataformas de tecnologia da história. Essa conclusão, aliás, é praticamente consenso entre especialistas, usuários e até mesmo ex-funcionários. Afinal, desde a aquisição atrapalhada do microblog pelo bilionário Elon Musk, em outubro de 2022, a rede vale hoje US$ 20 bilhões, menos da metade do valor pago por Musk, US$ 44 bilhões, segundo dados do The Wall Street Journal.

E não é apenas a questão financeira que pesa contra o Twitter. Praticamente toda a infraestrutura da plataforma foi liquidada após a aquisição. Se antes de outubro de 2022 eram pouco mais de 8 mil funcionários por todo o mundo, hoje são menos de 1,5 mil. “Eu não sou o CEO do Twitter. Meu cachorro é o CEO do Twitter e ele é um ótimo cachorro, muito alerta. Não é nada divertido, é doloroso. A empresa iria à falência se não cortasse custos imediatamente”, disse Musk, no início de abril, em entrevista à BBC.

Mudanças do “Twitter de Musk” para o usuário 

Para o usuário, no entanto, a compra do Twitter teve, na prática, três impactos. O primeiro deles diz respeito ao conteúdo na rede. Antes, uma equipe de curadoria, que envolvia centenas de pessoas, de várias equipes, por todo o mundo, atuava filtrando as postagens com uma camada de “fact-checking” – basicamente limpando o Twitter de fake News. Hoje, essa barreira humana não existe mais, pois todos os times foram demitidos ainda no final de 2022. 

O segundo impacto também tem a ver com conteúdo, mas aquele disseminado por contas falsas, os “robôs”. Se antes tanto o algoritmo quanto a curadoria lutavam contra posts feitos por “fakes”, hoje o Twitter se limita a tentar eliminar as contas falsas. E, lógico, isso tem pouco efeito prático. Afinal, há apenas cerca de 500 engenheiros, quase um décimo do que havia antes de Musk, e quatro especialistas em infraestrutura – um time antes composto por cem pessoas. Manter o site no ar, estável, é um milagre. Caçar bots parece uma missão impossível. 

O terceiro, e mais crítico, impacto, parece um problema trivial, mas que tem enormes consequências: a remoção indiscriminada de todos os selos de verificação de autenticidade – os azuis, que garantiam que aquela pessoa é, de fato, quem diz ser. Usado majoritariamente por personalidades e políticos, além de jornalistas, celebridades e nomes relevantes do microblog, o selo azul funcionava como um carimbo, dizendo que aquela conta era real. Sem a verificação, fica aberta a porta para que qualquer um assuma a personalidade que quiser – um dia após perder o selo, o jornal The New York Times ganhou dezenas de “clones”, enganando usuários mais distraídos. 

Leia também: Elon Musk e o Twitter: como não administrar um negócio

Ou seja, sem os verificados, sem a curadoria e sem um time de engenheiros o Twitter se torna um ambiente perfeito para disseminação de fake News. Depois de virar terra sem lei, o discurso de ódio explodiu na rede. Segundo estudo divulgado no início de abril, conduzido por Keith Bourghardt, um especialista da University of South California, o discurso de ódio dobrou após a compra da rede.

Mais uma consequência impensada da remoção dos selos azuis foi o boicote a elas, promovido, majoritariamente, pelos reais donos das contas – aqueles que eram verificados e arrastavam milhares ou milhões de seguidores. Com isso, aqueles com interesse em disseminar conteúdo extremista, de ódio ou mesmo fake news adotaram o “blue check”, o selo azul pago, a nova política de Musk. Assim, contas com apenas dezenas de seguidores, com fortes indícios de serem falsas, conseguem um alcance muito maior a seus posts (essa é uma das vantagens do Blue Check).

E um adicional: para o mercado – anunciantes ou fabricantes – a situação é ainda pior. Afinal, empresas devem pagar taxas de até US$ 1 mil por mês para terem a verificação, e contarem com alcance ampliado. E, além disso, se quiserem impulsionar postagens ou campanhas, terão de pagar a mais. Ou seja, é vantagem para quem? 

Musk: gênio incompreendido ou gestor incompetente?

A polêmica da venda do selo azul parece ter sido a única inovação dos seis meses da “Era Musk” à frente do Twitter. É pouco para a rede social que revolucionou a comunicação. Nascido em 2006 – mas anunciado pouco antes – o microblog teve seu primeiro tuíte em março daquele ano. Em 2010, a rede viu seu primeiro post feito do espaço. Em 2013, fez seu IPO e angariou a incrível quantia de US$ 1,8 bilhão.

A rede social foi palco para organização e realização de dezenas de revoluções mundo afora – na Moldávia, no Irã, Tunísia, Ucrânia e até mesmo nos EUA, durante a trágica invasão do Capitólio, na sequência da derrota do então presidente Donald Trump, que concorria à reeleição como presidente dos Estados Unidos.

Para o investidor-anjo e cofundador da ScAngels, uma das maiores organizações de fomento de startups de Santa Catarina, Rafael Silva, Musk pode estar dando os primeiros passos de um plano maior, que ainda não foi compreendido pela maioria. Otimista, o “angel” compara a trajetória do Twitter com os outros negócios de Musk.

“Se voltarmos um pouco no tempo, a Tesla era uma piada. Em 2008, ela estava à beira da falência, seus primeiros veículos tinham uma enxurrada de defeitos: janelas, portas suspensão até questões relacionadas a segurança dos passageiros, sem contar as críticas ao modelo de negócio. Já a SpaceX é quase um milagre. Uma empresa que vai melhorar a forma de levarmos ao espaço… Sério? O Próprio Neil Armstrong criticou o projeto”, disse ao IT Forum.

De fato, se olharmos a trajetória improvável de Musk, pode até fazer sentido. E pode justificar reações passionais dos usuários da rede social. Afinal, Musk está longe de ser uma figura querida – embora seja endeusada por muitos da comunidade empreendedora. Ainda para Silva, os movimentos ousados de Musk à frente do Twitter precisam de mais tempo para serem avaliados.

“O que quero dizer com tudo isso? É muito cedo para saber de verdade se toda essa loucura é ou não parte de um objetivo maior. Sim, demitir 8 mil pessoas ao piscar de um olho parece algo amador ou uma resposta que somente Musk entende, como sua aparição com uma pia no primeiro dia do Twitter. Mas a possibilidade de transformar o aplicativo em um superapp pode ser a grande virada que ele espera.” 

Canais fechados: o impacto do “emoji de cocô” 

Se Musk cortou quase 80% do pessoal, a queda na receita, segundo dados aferidos até o início de abril de 2023, atingiu 50% desde outubro de 2022, segundo dados da consultoria Sensor Tower. Para contexto, historicamente, o Twitter obtém mais de 85% da sua receita anual com publicidade. Uma queda dessa magnitude pode colocar em risco a liquidez da rede – e sua existência. Que, basicamente, passará a depender de aportes do seu dono, que irá decidir se e como irá fazê-lo.

E se o bilionário apostou todas as suas fichas no “selo azul”, a matemática não fecha. Estima-se que, até o final de março, pouco mais de 600 mil perfis ostentavam o até então cobiçado selo azul. E, para manterem o selo, essas contas deveriam pagar os US$ 8, o que implicaria num faturamento adicional de U$ 4,8 milhões. Tendo em vista que a receita anual do Twitter, em 2022, foi de US$ 4,4 bilhões (85% de publicidade, lembram?), os US$ 4.8 milhões do selo azul representam… 0,1%. Ou seja, é uma medida financeiramente irrelevante.

Para o professor da ESPM-RJ e doutor em Comunicação Social e pesquisador de mídias sociais, João Vitor Rodrigues, o Twitter ainda é uma “rede social de temas quentes”. Ou seja, ideal para conversas sobre o que acontece em tempo real – programas de televisão, como o BBB, e séries do streaming. Por isso, para alguns negócios, criadores de conteúdos e marcas, o Twitter ainda pode promover visibilidade, engajamento, interesse e motivar conversas.

“O Twitter sempre teve características bem particulares no que diz respeito a seu uso enquanto canal na estratégia de marcas. Para o marketing ele é uma rede de tempo real (real time marketing), é preciso investir e aprender sobre como participar das conversas mais do que pensar apenas em produzir tweets como conteúdo de marca”, explica Rodrigues, lembrando, ainda, que a equação “usuários insatisfeitos = menos atenção” impacta diretamente na receita. Afinal, marcas querem mais gente, com mais atenção, por mais tempo.

Para o professor, o link entre a falta de estrutura – e consequente falta de moderação -, impacta diretamente a receita na medida em que marcas precisam ter um cuidado enorme com sua reputação. E essa, sem dúvida, não é uma preocupação de Musk. Os emojis de cocô, adotados na comunicação com a imprensa e até mesmo anunciantes, são uma prova disso. Qual marca quer ter sua imagem associada a um bilionário que envia uma resposta “malcheirosa” a qualquer questionamento?

“Há grandes chances de a receita [do Twitter] diminuir, se marcas e negócios entenderem que não querem ver sua imagem associada a uma rede social tão comprometedora por falta de moderação de conteúdo e pelas declarações e posições do Musk”, diz Rodrigues, que é direto ao responder sobre qual seria a alternativa mais viável para o Twitter ter uma sobrevida: “Em primeiro lugar que saísse das mãos do Musk. Não sendo possível, que voltasse a ser o que era antes da chegada dele, mas agora com participação ainda mais urgente da sociedade civil e de governos para que aprovem regras para regulação dessas empresas de tecnologia e responsabilização pelo conteúdo que distribuem.”

Debandada de creators e desconfiança

Sem moderação, com um bilionário tomando decisões que ninguém entende, vendo seu valor cair pela metade – assim como a receita – e com apenas 20% dos funcionários, em relação a seis meses atrás, o Twitter parece com um pé na cova virtual. Para muitos, a rede em breve fará companhia no paraíso digital a gigantes de outrora, como Orkut, Google+, MySpace, Fotolog e até mesmo o hype de 2020, o ClubHouse. 

Galileu Nogueira, creator e especialista em branding, compartilha da opinião do professor Rodrigues: o Twitter ainda é uma rede de “tempo real”, com relevância na construção de marca e imagem. Mas Nogueira já aponta um declínio de quase 30% nas verbas de publicidade.

“A rede passou por mudanças drásticas recentemente e tem apresentado poucos benefícios para anunciar por lá, ou ainda contratar um influencer que tenha “força” nesse ambiente. As marcas têm preferido investir onde a audiência está, como TikTok e Instagram, e que apresentam métricas robustas de retorno de investimento, alcance, engajamento, cliques no link do anúncio e posterior conversão. Acredito cada vez menos que o Twitter receberá verbas significativas (como já foi no passado)”.

E mais uma prova de que o fator “emoji de cocô” também afeta o Twitter junto aos anunciantes é apontada por Nogueira. A falta de transparência sobre usuários novos e potencial publicitário é apontada como crítica. E, para piorar, como estratégia para recuperar anunciantes, a rede social tem oferecido descontos altíssimos (e até mesmo com ofertas de gratuidade nas campanhas) a quem voltar a fazer negócio com a plataforma. Mas, claro, a rede nem comenta essas ofertas (responde com o já tradicional emoji de cocô…) e ainda exige que os parceiros mantenham sigilo.

“O Twitter divulga poucas informações sobre crescimento da rede e potencial publicitário e isso, por si só, já espanta anunciantes e agências. O que se sabe até hoje é que a rede apresenta um crescimento bem lento no número de usuários novos, como também usuários ativos na plataforma”, aponta Nogueira.

E, como vimos, menos novos usuários, menos ativos, com um CEO que frequentemente embarca em discursos de ódio ou manda promover seus próprios tuítes durante o Superbowl (maior evento publicitário dos EUA), tendem a ser menos interessantes (ou nada interessantes) ao mercado.

[Na segunda parte do especial “O longo fim do Twitter: selo azul, emoji de cocô e os bastidores do negócio”, você acompanhará o depoimento de uma pessoa do time de curadoria do Twitter]