História da Copa-50 é passada de geração para geração, e os craques nacionais se cansaram de justificar a derrota brasileira
Peço licença aos internautas para relembrar uma experiência que vivi no dia 9 de outubro de 1999, há exatos 25 anos, ainda nos tempos de universidade. Eu estava terminando o curso na PUC-SP e me dividia entre o trabalho na Rádio Eldorado (estava na emissora desde dezembro de 1996) e o TCC da faculdade, sob orientação do jornalista Marco Nascimento. O professor deixou que eu fizesse o trabalho sozinho, pois meu grupo queria desenvolver outro tema. Apesar das dificuldades de enfrentar essa empreitada sem os amigos, não me arrependo, pelo contrário. Foi, sem dúvida, um dos desafios mais legais que já tive e que acabou me trazendo um aprendizado importante. Cometi erros, claro, mas acho que acertei bastante.
Como eu já trabalhava em rádio, resolvi optar por um TCC na área de televisão. Desde 1990, eu já colecionava material sobre Copa do Mundo, meu tema predileto, e, então, resolvi contar a história do Mundial de 1950, disputado no Brasil, em um documentário de 20 minutos. O professor Marco Nascimento temia que o TCC ficasse pobre por causa da falta de imagens de arquivo (lembrando que não havia YouTube). Eu disse a ele que esse era o menor dos problemas, pois eu tinha um acervo considerável de Copa do Mundo. O desafio seria então conseguir entrevistas com ex-jogadores. A partir daí, meu trabalho ganhou o aval do Marco.
Comecei a pesquisar então quem eu poderia entrevistar para o TCC. Um problema, entretanto, seria a distância, pois alguns dos principais nomes daquela seleção, que perdeu o jogo decisivo para o Uruguai, em 16 de julho de 1950, moravam no Rio de Janeiro. Em 1998, durante uma série sobre as Copas que eu produzi para a Eldorado, tinha feito entrevistas, por telefone, com Zizinho, um dos grandes craques do futebol nacional, e com Flávio Costa, que foi o treinador da equipe em 1950. Então liguei para os dois e eles aceitaram me dar um novo depoimento, agora de forma presencial. Marquei as duas entrevistas para sábado, 9 de outubro de 1999. A primeira, às 13h30, na casa de Zizinho, em Niterói. A segunda seria por volta das 16h, no apartamento de Flávio Costa, em Botafogo.
Cheguei ao aeroporto de Congonhas, comprei as passagens de ida e de volta para o mesmo dia, no balcão da extinta Varig Rio Sul. Naquela época não havia sites como Decolar. Lembro que paguei os dois bilhetes com um cheque no valor de R$ 380. Levava comigo um “trambolho”: uma mala enorme com uma câmera VHS e um tripé, cedidos pela PUC.
Fazia bastante sol na manhã daquele sábado inesquecível para um jovem e futuro jornalista de 23 anos. Estava, claro, ansioso por encontrar personagens de um tema que eu já pesquisava há tempos e que permeava o meu imaginário, muito por culpa do meu pai, Teodoro Uberreich. Ele tinha 9 anos em julho de 1950 e vivia me contando histórias sobre aquela fatídica Copa. Cheguei ao Santos Dumont, peguei um táxi e parti para Niterói. Eu já tinha estado no Rio com meus pais, em 1991, mas daquela vez seria para uma rápida, mas fundamental experiência profissional.
Cheguei ao prédio de Zizinho, e o taxista propôs me esperar, pois tinha contado a ele que eu ainda iria para Botafogo. Ele desligou o taxímetro durante aquele período de uma hora e meia. Quando o “Mestre Ziza” abriu a porta, eu fiquei paralisado. Não acreditava que estava diante de um dos maiores nomes do futebol brasileiro. Com um sorriso enorme, me cumprimentou e me chamou para entrar; não havia mais ninguém. O apartamento tinha três quartos, possuía uma decoração antiga, e ele me levou para um dos dormitórios usado como sala de troféus e recordações. Gravei a entrevista lá. Ele só interrompeu a conversa uma vez para pegar água na cozinha:
Estou com a garganta seca, pois ontem foi aniversário da minha filha e saímos para comemorar.
Por quase uma hora, ouvi com atenção as histórias daquele jogador que não fugia das perguntas. Ele não escondia a amargura pelo vice campeonato mundial de 1950. Criticou dirigentes e lamentou o clima de “já ganhou” que tomou conta da imprensa na época. Uma das frases mais marcantes da conversa foi a seguinte: “Nós não tínhamos uma seleção tão boa como diziam nem o Uruguai era uma equipe fraca”. Elogiou os jogadores adversários, como Obdulio Varela e Ghiggia, e tentou dirimir todas as minhas dúvidas. Ao final, me deu um livro autografado sobre a história dele: um presente que guardo até hoje. O abracei, o agradeci e parti para Botafogo.
O taxista custou a encontrar o prédio onde Flávio Costa morava. O edifício não tinha porteiro, algo comum no Rio. toquei o interfone e me lembro que a liberação demorou um pouco. Uma senhora idosa abriu a porta e pediu para que eu sentasse. Ela me contou que trabalhava naquela casa há 50 anos e disse isso com muito orgulho.
Um dos meus erros daquele dia foi ter chegado ao apartamento de um ex-técnico da seleção brasileira durante um jogo da seleção. É isso mesmo: um amistoso contra a Holanda que terminou empatado por 2 a 2. A senhora disse que ia chamar o ex-treinador, que assistia ao jogo em outro cômodo. A partida já tinha começado (passava das 16h) e a TV do quarto estava muito alta. Aos 93 anos, Flávio demorou uns dez minutos para ir até a sala e, visivelmente irritado, me perguntou:
O que o senhor quer?
Ele não se lembrava do contato feito por telefone e disse que só iria me atender depois do jogo. Fiquei apreensivo, pois se fosse assim, iria perder o voo de volta para São Paulo. Felizmente ele reapareceu no intervalo e se sentou no sofá. Eu não tinha deixado a câmera montada com o tripé e ele reclamou: “Por que o senhor já não montou esse trambolho?”. Eu também me pergunto isso até hoje. Inexperiência! Por causa do horário, fiz uma gravação de 20 minutos, tempo suficiente para conseguir boas respostas.
Durante a conversa, a seleção brasileira marcou um dos gols do jogo, que já estava no segundo tempo. É possível ouvir o grito de Galvão Bueno ao fundo da minha gravação. Na entrevista, Flávio Costa declarou que há 50 anos aparecia gente na casa dele para perguntar por que o Brasil tinha perdido a Copa. Eu acho que fui o último a fazer esse questionamento, pois ele morreu em 22 de novembro de 1999, ou seja, um mês e meio depois da minha ida ao Rio de Janeiro.
Terminei a entrevista, Flávio se levantou e nem me cumprimentou, voltou ao quarto para assistir à sequência da partida do Brasil. Desmontei a câmera, agradeci a senhora que me serviu um copo d’água e retornei ao aeroporto com o mesmo taxista. Comi um sanduíche no Santos Dumont, pois não tinha almoçado, e retornei feliz para São Paulo.
Mais duas entrevistas: em São Paulo e em Praia Grande
Na semana seguinte, fui a um centro de treinamento do São Paulo Futebol Clube (Complexo Jardim Aracati) para uma entrevista com o ex-médio volante Bauer. Muito simpático e prestativo, deu mais detalhes sobre a Copa de 1950 e relembrou a emoção de ver o Maracanã lotado, principalmente nas vitórias contra a Suécia, 7 a 1, e sobre a Espanha, 6 a 1, nas duas partidas anteriores à derrota para o Uruguai. Ele até relembrou os versos da marchinha “Touradas em Madri”, cantada nas arquibancadas do Maracanã durante a partida diante dos espanhóis.
Dias depois, peguei um ônibus no terminal Jabaquara, na zona sul de São Paulo, para fazer uma entrevista com Moacir Barbosa, na Praia Grande, litoral paulista. O ex-goleiro é um dos jogadores mais injustiçados da história do futebol brasileiro. Acusado de falhar no gol decisivo contra o Uruguai, Barbosa afirmou, durante a conversa, que, para ele, a Copa de 1950 tinha morrido: “Foi uma nuvem que passou. Não interessa mais. Eu não vou revolver cinzas.” O ex-atleta, que marcou época no Vasco da Gama, morreu pobre na mesma Praia Grande, seis meses depois, em abril de 2000.
Depois do meu documentário de conclusão de curso, batizado de “Meio século de silêncio no Maracanã”, continuei pesquisando e coletando material sobre a Copa de 1950. Em julho de 2000, fiz uma série especial para a Rádio Eldorado. Além das entrevistas do meu TCC, tive o privilégio de conversar, por telefone, com o uruguaio Ghiggia, carrasco nacional, e com o ex-lateral esquerdo Bigode, que vivia no Espírito Santo. Anos depois, em 2016, consegui reunir a íntegra das transmissões feitas pela Rádio Nacional das seis partidas do Brasil. As narrações de Jorge Curi e Antonio Cordeiro nos remetem aos dias de junho e julho de 1950, quando um país que sonhava em ser grande construiu o maior estádio do mundo para receber a festa do futebol. Infelizmente, um momento de triste memória para os brasileiros.