Identitarismo militante será a guerra das guerras

Esta semana me envolvi, involuntariamente, num debate político. Com todas as minhas forças, eu tento evitar isso, mas uma jovem atiçou minha veia conservadora ao me chamar de “projeto de fascista”, por eu defender que transexuais deveriam ser banidos de esportes que não condizem com a suas sexualidades biológicas. Pacientemente, então, tentei mostrá-la que meu argumento era de que as próprias mulheres se encontravam vilipendiadas em seus méritos quando homens, fisiologicamente mais fortes, roubavam o protagonismo, os títulos e, em última instância, as premiações ‒ o dindin ‒, apenas se valendo da artimanha progressista de dizerem “me sinto mulher”. O debate foi motivado pela decisão da Federação Mundial de Atletismo que proibiu expressamente a participação de transexuais nas categorias que eles psicologicamente se alocavam. É claro que a neofeminista escolheu defender a vontade dos “projetos de mulheres” ‒ parafraseando a sua ofensa dirigida a mim ‒ ao invés das mulheres biologicamente verificadas, preferiu encher-me de adjetivos toscos misturados a gritos comuns de militantes ao prestar atenção à razoabilidade do que expunha. Aconteceu, por fim, de eu me lembrar de uma questão básica dos debates com jovens ‒ e do porquê eu evitava debater com jovens militantes ‒: eles não querem chegar à verdade, querem apenas ser aplaudidos, querem suprir suas cotas de empatias diárias e serem afagados por seus supostos engajamentos em prol da humanidade sem face, sem sexo, sem alma.

Obviamente que eu estava chagado por aquela concepção antiga e antiquada que afirma que nossas convicções e opiniões devem ceder à verdade quando ela se mostra a nós ‒ não importando de onde ela venha. Essa reverência à verdade, esse culto ao fato demonstrado, não faz mais parte dos apreços comuns na contemporaneidade, e, diante da mais patente obviedade, atualmente medimos suas consequências em paralelo com as nossas vontades e achismos, sendo esses últimos as prioridades nessa disputa. Hoje os fatos devem consultar nossos sentimentos antes de ousarem desrespeitar qualquer nova regra de conduta empática estabelecida pelo tribunal soviético dos adolescentes militantes; porém, não é de assustar que, na era em que Felipe Neto é especialista político, homens podem espancar mulheres em ringues e alta inflação é coisa boa para o pobre, seja a mentalidade afoita e imprudente dos jovens histéricos o norte social do país. A face mais notória dessa geração egocêntrica, autoritária e ansiosa é justamente sua capacidade de, através da histeria, construir narrativas românticas na tentativa de dobrar a realidade à sua pauta política ‒ aquilo que o filósofo José Ortega Y Gasset chamaria de “acanalhamento”.

Sentia-me frustrado, não por mim, mas pela menina e pela turma que a cercava e a encorajava enquanto ela latia seus chavões e argumentos desconexos, completamente irracionais e desmedidos. Aquela menina, sinceramente, achava que estava defendendo um direito inegociável ao escudar um marmanjo que, após acordar um dia denominando-se de mulher, agora tomava de assalto os espaços dignamente conquistados por mulheres após séculos de labuta social e política; ela realmente não conseguia enxergar o grotesco, o óbvio bizarro que estava ante sua face. E aqui está o ponto alto dessa reflexão, aquilo que é mais assustador e desanimador nos dias atuais.

A nossa querida moça progressista parecia tomada por um controle externo que a cegava por completo, uma cegueira tão absurda que anulava sua capacidade intrínseca de ser humano, isto é, a de refletir autonomamente sobre fatos observáveis, de usar sua atribuição única entre todas as espécies, a de análise racional da realidade, para captar as desordens e organizações do contexto que a cerca. A ideologia ‒ habilmente plantada e nutrida em sua psique ‒ a transformava em uma coisa manipulável, ao ponto de que um nadador biologicamente homem tomando o pódio de mulheres, ou um lutador trans (homem) socando a cara de outra mulher, torna-se algo não só aceitável, mas também necessário e louvável na economia do reino progressista que ela defende. 

Findei aquele debate completamente exausto, triste e me sentindo um completo inábil, afinal, se não somos capazes de convencer alguém de que um fato é fato, ainda que ele se mostre óbvio e gritante, poucas coisas restam à utilidade da razoabilidade. No fim, percebi que fui forçosamente conduzido a uma sociedade anônima da obviedade, tornei-me dissidente ante neosovietismo dos furiosos jovens engajados ‒ algo que Anthony Burgess previu em sua obra Laranja Mecânica com raro brilhantismo. Por fim, parece que eu era de algum círculo bizarro de pessoas que acreditavam que a realidade importava, que os nossos projetos ideológicos, gostos sexuais e demais paixões, no final do dia, não sobrepunham o real observável. 

No estacionamento da universidade, olhei para o lado para observar bem o ambiente que me cercava, anotei mentalmente cada palavra proferida naquele encontro, encontrava-me espiritualmente num vazio pesado. Logo me veio  à percepção que a humanidade, desde o advento da filosofia antiga na Grécia, lutara duramente pelo esclarecimento, pela compreensão e ordenamento das ideias, e pela categorização e conceituação da realidade; a contemporaneidade, por sua via, escolheu a balbúrdia emocional, a histeria ideológica, os farelos do absurdo ilusório. Talvez seja, assim, a primeira vez na história que enxergamos o louvor do absurdo alcançar tantos adeptos, nunca o falseamento corruptivo da mentalidade humana foi tão bem quisto e tão ferozmente defendido. Tenho certeza de que a nossa civilização nunca enfrentou um inimigo tão poderoso e tão expansivo quanto o identitarismo militante; esta será a guerra das guerras.