Mais impostos para o andar de baixo

Você leu o texto da PEC da reforma tributária? Eu li e cheguei à conclusão de que vou pagar mais impostos para que os próximos governos possam gastar mais — sim, também li o texto do arcabouço fiscal que prevê a ampliação dos gastos públicos. O lobby por trás da PEC vem da indústria, cuja participação no PIB cai sem parar e chegou a 23,9% em 2022, praticamente o mesmo nível do agronegócio, mas que faz o caminho inverso, crescendo ao longo dos anos. O setor mais dinâmico da economia brasileira, porém, é o de serviços, que chegou a 70% do PIB — mesmo tamanho da fatia da indústria no passado. Essa inversão completa do perfil econômico brasileiro é consequência, fundamentalmente, do fracasso do nosso capitalismo de compadrio, fundado em relações promíscuas entre público e privado. Incompetência e corrupção selam o destino da nação.

De 1980 a 2020, a indústria dos Estados Unidos mais que dobrou, enquanto a da China ficou 47 vezes maior. A do Brasil cresceu apenas 20%. Não adianta culpar o mundo, se não fomos capazes de educar nossas crianças, formar profissionais especializados, investir em ciência e tecnologia, liberando as energias produtivas e dando ao Estado o tamanho suficiente para garantir segurança nacional, sanitária e energética. E só. Eu poderia gastar páginas com exemplos constrangedores sobre o nosso (deles, na verdade) ‘modelo de negócio’, mas fixo na notícia mais recente sobre a ação popular que questiona a operação do segundo governo Lula que entregou para a Odebrecht o monopólio do setor petroquímico. É ridículo e, provavelmente, criminoso.

A atual reforma tributária possui todos os marcadores genéticos desse mesmo capitalismo clientelista que criou bilionários e tornou o Estado ainda mais ineficiente, com um emaranhado de subsídios fiscais para diferentes setores — muitos conquistados na base da propina, como mostrou a Lava Jato. Difícil esperar resultado diferente, quando se aumenta a carga tributária sobre serviços e consumo, prejudicando o setor que mais gera empregos e os trabalhadores assalariados — inclusive os mais pobres –, enquanto se cria uma série de exceções para o andar de cima. Sob a alegação de que alguns serviços e produtos possuem “peculiaridades que dificultam ou não recomendam” a aplicação do imposto único dual, foram retirados da PEC os serviços financeiros, as operações com bens imóveis, e os planos de assistência à saúde. Nesses casos, a PEC apenas prevê que sejam apresentadas leis complementares, sem estabelecer prazos para isso.

Quem acompanhou o debate sobre a reforma do IR e taxação de lucros e dividendos, aprovada na Câmara em 2021 e até hoje parada no Senado, desconfia que a regulamentação do setor financeiro não sairá nunca. A PEC, aliás, faz questão de indicar quais atividades terão regime específico: “As operações de crédito, câmbio, seguro, consórcio, arrendamento mercantil, faturização, previdência privada, capitalização, operações com títulos e valores mobiliários e outras que impliquem captação, intermediação, administração ou aplicação de recursos; e outros serviços prestados por instituições financeiras.” Quem vai enfrentar bancos, financeiras e corretoras? O mesmo pode se dizer das operadoras de saúde, que há pouco garantiram um reajuste de 9,63% — bem acima da inflação.

Muita gente diz que o texto que deverá ser aprovado hoje foi basicamente construído no governo de Jair Bolsonaro, que não aceitou pagar a conta de meio trilhão que os estados queriam espetar na União por causa da guerra fiscal. Paulo Guedes chegou a dizer que faria a unificação dos impostos federais e deixaria os estados resolverem por conta própria. O debate iniciado anos atrás serviu, claro, de janela de oportunidade para o lobby de setores privilegiados, aqueles que resistem à tributação da renda — solução mais inteligente e justa. Se a uniformização dos impostos é positiva e tem até um certo “caráter civilizatório”, ao colocar todos sob a mesma régua, por outro fará o cidadão médio carregar um piano ainda mais pesado. Como me disse um observador atento da cena política, não dá para esperar desoneração de uma reforma tributária feita pelo Estado. Não dá para esperar nada do Estado.