Mobilidade urbana vai além do debate sobre o transporte público

Cerca de 85% da população brasileira mora em cidades. Para ir de um lado a outro e cumprir todas as atividades diárias, algumas pessoas andam a pé, outros locomovem-se por bicicleta, automóveis e transporte público — como ônibus, trens e metrô ou até embarcações, em cidades com rede hídrica adequada. Acesso à cultura, lazer, saúde, educação, compras e trabalho integram as atividades sociais e econômicas a que todo o cidadão tem direito. Bairros autoconstruídos e à margem das regulações urbanas espalham-se pelo território urbano, distanciados dos centros comerciais e prestadores de serviços — situação que dificulta, quando não, impossibilita, a oportunidade de participação pela falta de acesso.

O transporte público realizado pela frota de ônibus das cidades brasileiras é um dos principais meios de locomoção. Baldeações, atrasos, tarifas caras e horas e mais horas dispendidas em trajetos resultam da dissociação entre a localização do emprego, da moradia, da localização dos equipamentos públicos. O que ocorre, ao menos na cidade de São Paulo, é que os trajetos oferecidos pelas empresas de transporte priorizam dois tipos de locomoção. A estrutural, com veículos maiores, com uma ou mais articulações que rodam em corredores exclusivos, privilegiam deslocamentos pendulares de quem trabalha. Como a população trabalhadora não reside próxima aos corredores, as companhias atendem de forma precária o “miolo” dos bairros e proximidades. Ao privilegiar os trajetos realizados em corredores, empresas de transporte e prefeitura desconsideram as particularidades das viagens locais e os trajetos realizados por mães para levar filhos à escola ou de idosos que vão às unidades básicas de saúde, ou mesmo dos jovens que vão aos centros comunitários, bibliotecas e centros esportivos, por exemplo. Existe vida econômica e social nos bairros mais distantes. Meios de transporte público que integrem modais ativos são importantes para o acesso da população em geral.

A recente publicação intitulada Índice de Acesso à Cidade mostrou-se uma ferramenta indispensável para nortear decisões estratégicas de planejamento. Como objetivo específico, o IAC pretende reduzir as desigualdades sociais, aumentar o acesso às oportunidades e promover a integração dos modos de transporte, contribuindo para cidades inclusivas e sustentáveis, alicerçando-se na Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), de 2012. Resultado da parceria entre a empresa de tecnologia 99, instituto Multiplicidade Mobilidade Urbana e o CLP (Centro de Liderança Pública), a pesquisa avaliou 17 cidades (13 capitais e 4 cidades de relevância econômica distribuídas nas cinco regiões do país) com o objetivo de avaliar as condições de oportunidades, uso do solo, desigualdades e sistemas de transporte por meio do Índice de Acesso à Cidade — que aponta o quanto as cidades estão acessíveis para a população, considerando diferentes modos de locomoção. O IAC é composto pelo Índice de Acesso à Cidade em Prol da Redução das Desigualdades (IAOD, que mede o acesso das pessoas residentes às oportunidades de trabalho, educação e saúde, considerando o uso do ônibus, bicicleta, mobilidade a pé e automóvel por aplicativo) e o Índice de Integração do Automóvel por Aplicativo com o Transporte Público (IATP, que mede a complementação com o transporte público por outros modos utilizados para acessar uma estação de transporte ou após o desembarque).

O resultado da pesquisa não se configura nem pretende ser entendido como ranking de acesso entre os municípios, pois cada um deles apresenta distintas características, ao vivenciar diferentes condições de oportunidades, uso do solo, desigualdades e sistemas de transporte. Os resultados apontam que cidades menores, compactas, têm predisposição a IAOD maiores, uma vez que as oportunidades existentes, concentradas numa área menor, permitem acesso por outros modos de transporte (ativos) dentro de um período máximo, considerando-se o fator tempo. Já as cidades maiores e “espraiadas” apresentam mais possibilidades de integração do transporte coletivo. O IATP tende a ser maior, pois apresentam mais possibilidades e também maior necessidade de integração de outros modais (ativos e motorizados) do transporte coletivo, com investimento de tempo, eventualmente, maior em função das distâncias e baldeações, por exemplo. Capitais como Natal, Curitiba, Fortaleza e São Paulo apresentaram o IAC variando entre 40,9 e 56.1 de um total de 100 pontos. Já Teresina, Manaus, Campo Grande e João Pessoa têm indicadores menores de acesso às oportunidades oferecidas pelos centros urbanos, variando entre 15.3 e 33.9 – reiterando que números maiores apresentados na pesquisa mostram que as capitais provêm mais acesso às suas oportunidades, considerados os modos de transporte prioritários para a PNMU.

Desde a promulgação do Estatuto da Cidade (e lá se vão quase duas décadas) os prefeitos estão obrigados a incorporar em seu Plano Diretor, os respectivos Planos de Mobilidade, apresentando-os à população e informando como pretendem dar acesso às oportunidades existentes nas áreas providas de infraestrutura e serviços. Reitera-se que a desigualdade se origina nos locais onde moram as pessoas mais pobres, regiões periféricas desprovidas de infraestrutura e serviços essenciais à vida urbana plena. Como melhorar as condições de vida urbana se tudo o que é necessário fica longe, caro e toma muito tempo? É mais ou menos isso. A publicação veio em boa hora, permitindo a qualificação dos debates sobre mobilidade urbana, tema que, mais complexo do que a discussão sobre o sistema de transporte, exige do poder público e da sociedade conhecimentos mais abrangentes, inter-relacionados e multifacetados para que a tomada de decisões gere impactos positivos para os diversos grupos sociais e arranjos territoriais.

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas.