Mundo em conflito: tensões fazem segurança internacional colapsar, e 2024 fica vulnerável a novos atritos

Guerras, aumento de tensões, revoltas e conflitos, o ano de 2023 foi marcado por isso no cenário internacional. Desde os primeiro meses do ano já era possível ver uma certas anomalias das relações exteriores e interiores. Israel e França, por exemplo, tiveram ondas de manifestações desencadeadas pelo descontentamento da população com as ações do governo — os israelenses, com a reforma judicial, e os franceses, com a reforma da previdência. Sudão e Níger registraram conflitos internos, de grupos paramilitares lutando contra o governo em busca do poder. A Rússia, que está em guerra com a Ucrânia há quase dois anos, viu o Grupo Wagner se rebelar contra o país e marchar em direção ao Kremlin. A Armênia viu seu território ser invadido pelo Azerbaijão, com alegação de um operação militar. O mesmo aconteceu em Israel que, de forma inesperada, foi atacado pelo grupo terrorista islâmico Hamas, ação que desencadeou em mais uma guerra em curso no planeta. Já na América, Venezuela e Guiana entraram em conflito por Essequibo, uma região rica em petróleo e sob posse da ex-colônia britânica, mas que Caracas diz lhe pertencer.

Com exceção da Oceania, todas as regiões do mundo ficaram imersas ao conflito. Apesar de na Ásia Oriental não ter tido nenhuma operação de fato, as relações entre as Coreias ficou mais estremecida em 2023. Além disso, Estados Unidos e China, duas potências que estão sempre em atrito e disputam a liderança global, além de verem seus laços ficarem balançados após o episódio do balão chinês no começo do ano — os norte-americanos alegaram ser um objeto de espionagem —, também ficaram mais distantes da “paz” por causa de Taiwan, ilha que a China alega lhe pertencer e já disse que pretender retomar o controle sobre ela, seja de forma pacífica ou à força. Os americanos se posicionaram dizendo que vão ajudar Taiwan a se defender. Esses episódios de 2023 foram só a ponta do iceberg de um problema que já vinha se desenhando há tempos, mas que agora colapsou. “O que esse ano revelou foi o aprofundamento de uma tendência que já vinha de anos anteriores, mesmo antes da guerra na Ucrânia, que é um mundo mais marcado por antagonismos, divisões e tensões”, pontua Paulo Velasco, doutor em ciência política pelo IESP-UERJ.

Um míssil explode na cidade de Gaza durante um ataque aéreo israelense

Um míssil explode na cidade de Gaza durante um ataque aéreo israelense │MAHMUD HAMS/AFP

“O cenário internacional mostra-se muito desafiador e um mundo mais difícil de ser lido e interpretado”, acrescenta o especialista, que destaca um planeta em transição de poder, com China e Índia ganhando destaque e protagonismo, o que, naturalmente, causa algum tipo de temor e desconforto para as potências mais estabelecidas. Christopher Mendonça, cientista politico e professor de relações internacional do Ibmec Belo Horizonte, destaca que existem indicativos que mostram que 2023 talvez tenha sido o ano mais violento do ponto de vista da segurança internacional desde a Segunda Guerra Mundial. “Estamos em um momento de grande instabilidade. Acredito que essas tensões que começaram vão extrapolar o ano e vão ser ainda mais ampliadas em 2024”, projeta o professor. Ele expõe suas preocupações com o ano que se inicia. “Pode haver mais tensões para além do Oriente Médio e do Leste Europeu, com especial atenção para a África, que é onde tem sido deslocada empresas militares privadas e grupos mercenários”, explica. “Isso já é uma sinalização que o ano de 2024 não será um tão pacífico quanto nós gostaríamos que ele fosse.”

Grupos insurgentes x ONU

Os especialistas ouvidos pela Jovem Pan chamam atenção para um fator cada vez mais constante e que mexe diretamente com a forma de atuação da ONU (Organização das Nações Unidas): o fato de que a maior parte dos conflitos não ser entre dois países, mas entre um Estado e um grupo insurgente. “As guerras, principalmente no século 19 e 20, eram entre Estados. Quando acaba a Guerra Fria, a gente tem uma mudança considerável, e os conflitos e guerra ganharam caras que não tinham antes, que é o envolvimento de organizações estatais”, explica Mendonça. “Vemos grupos terroristas como o Hamas, Hezbollah, Estado Islâmico e grupos insurgentes”, acrescenta. Paulo Velasco destaca que essa situação modifica a dinâmica internacional em comparação ao período em que a ONU surgiu. “Ela foi criada para lidar com conflito entre Estados, tratando da segurança internacional mais típica e tradicional, Hoje, a segurança internacional envolve novas ameças e guerras que derivam de disputas étnicas, religiosas, tribais e nacionalistas”, diz o especialista, que também destaca a questão do terrorismo.

Apesar defender que é necessário que a ONU seja reformada, com destaque para o Conselho de Segurança — quando ela foi criada o mundo era totalmente diferente, com menos tensões e um cenário quase de unipolaridade norte-americana —, Velasco enfatiza que a vida é muito melhor com esse órgão do que se ele parar de existir e ressalta que é muito mais que um conselho sobre Segurança. “É preciso repensar a ONU, sem dúvida. Contudo, apesar das falhas, é difícil imaginar em algum momento a possibilidade do desaparecimento da ONU. Ela faz muito mais do que as muitas reuniões do Conselho de Segurança, então a organização tende a ser preservada. E ela é muito importante, apesar dos pesares para o mundo.” Christopher Mendonça também defende uma reforma do órgão e lembra que, desde que foi criado, quase não houve alterações. “A geopolítica mundial mudou bastante dos anos 40 até agora. Não houve uma reforma importante dentro dessa organização. Isso certamente garante uma dificuldade grande para o Conselho de Segurança em dirigir as tendências e os litígios”.

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Por diversas vezes neste ano, sem contar as atuações na guerra na Ucrânia, o Conselho de Segurança, único órgão capaz de acabar com uma guerra ou conflito, tentou implementar resoluções, porém falhou em sua maioria. Muito disso é devido ao atrito entre os membros permanentes: Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido e França. Se um deles votar contra, mesmo que haja maioria, a proposta em discussão é rejeitada de cara. “A ONU perdeu grande centralidade, é preciso de uma mudança urgente, colocando, sobretudo, países que estão numa localidade diferente daquelas que foram definidas pela Segunda Guerra Mundial”, fala o professor. Com a diminuição da legitimidade da organização, outros mecanismos ganham mais estabilidade, com destaque para as negociações bilaterais. Para o professor, uma forma de a ONU ainda se manter forte e recuperar sua credibilidade seriam ações para além do ingresso de novos membros, mas mudar as regras do Conselho, dando atribuições de veto também a outros países que não estão contemplados neste momento.