Nada é acessível o suficiente que não possa melhorar

Acessibilidade web não é nenhum assunto novo. No entanto, ainda assim encontramos um grande número de páginas que não são acessíveis e, pior ainda, um número de profissionais que não sabe, não quer ou não se importa com o assunto.

A mudança já caminha mais rapidamente, em comparação com anos atrás, mas ainda são passos pequenos, que precisam ser fortalecidos.

Horácio Soares é especialista em acessibilidade web, design, experiência do usuário, usabilidade e Web Standards, trabalha com acessibilidade web há mais de uma década. É fundador e consultor da Acesso Digital e da Interativa, além de fazer parte do Conselho Consultivo do Instituto Intranet Portal, do GT de Acessibilidade na Web do W3C Brasil e da equipe julgadora Prêmio Nacional de Acessibilidade – Todos@web. Nessa entrevista exclusiva, ele fala um pouco sobre o status do assunto no Brasil, onde estamos e o que precisamos fazer para chegar “lá” – em uma web real e verdadeiramente acessível.

1. Como você começou a trabalhar com acessibilidade web?

Meu primeiro contato com o termo acessibilidade foi em 2001, quando participei da resposta de um edital de licitação para construção de um sistema web para uma empresa do governo. Um dos itens do edital exigia que a solução fosse acessível para deficientes visuais.

Na época eu não sabia exatamente o que representava a palavra acessibilidade e muito menos o que precisaria ser feito para desenvolver um site acessível. Também não tinha a menor ideia de como, nem com que tipo de tecnologia, alguém com deficiência poderia acessar o conteúdo das páginas de um site.

Acabamos ganhando a licitação e fui um dos responsáveis por desenvolver a solução acessível da interface do sistema. Tive que aprender na marra e acabei me apaixonando pelo tema. Na verdade, fui mordido pelo mosquito da acessibilidade e descobri que seus efeitos são irreversíveis.

2. Nesse tempo de mercado, o que mais te assusta? E o que mais te da orgulho?

Me assusta ver que empresas de grande porte que ainda ignoram a acessibilidade e sua importância.  A mensagem é clara, elas não estão preocupadas em atender e fornecer serviços para essa “minoria”.

É a velha cultura da reatividade, afinal, mudar para que, se estão ganhando… “Por que precisamos oferecer serviços com mais qualidade se a demanda é bem maior que a oferta? Quando a concorrência crescer nos preocupamos com isso…”.

Ignoram que, quando a concorrência avançar, já poderá ser tarde. Que qualidade não é custo, mas sim investimento e que é bem mais barato manter um cliente do que que conquistar um novo.

Ignoram que dentro de diferentes contextos, todos nós somos usuários diretos de acessibilidade e não apenas as pessoas com deficiência.

Mas me dá muito orgulho em ver que parte cada vez mais significativa de nossos designers/desenvolvedores, mesmo lutando com tudo e todos, se qualificaram em acessibilidade e, quando podem, implementam suas técnicas em seus projetos digitais, mesmo sem seus clientes e gestores se darem conta.

3. Qual o estado atual da acessibilidade no Brasil? Ja é possível considerar que nossa web é acessível? Por quê?

A acessibilidade no Brasil ainda é bem incipiente, principalmente se considerarmos os serviços oferecidos pela internet.

Para se ter uma ideia do tamanho do problema, o W3C Brasil realizou, em 2010 e 2011, uma avaliação automática dos sites do Governo Brasileiro com domínio .gov. Foram aplicados testes automáticos de HTML, CSS e acessibilidade.  O resultado foi preocupante pois, em 2010, apenas 2,5% dos sites do Governo não apresentavam erros nas avaliações. Já em 2011, esse número dobrou para 5%, mas ainda é muito pouco, considerando-se que a validação automática só é capaz de realizar uma pequena parte dos testes de acessibilidade e padrões web.

Infelizmente, ainda estamos longe de uma web brasileira verdadeiramente inclusiva e democrática.

4. Acessibilidade web é uma só, independentemente do tipo de pagina? (portais de noticia, blog, e-commerce, etc)

Dependendo dos tipos conteúdos (textos, imagens, links, vídeos, áudios, tabelas, formulários,…), das tecnologias utilizadas e das interações de cada página, as técnicas podem ser diferentes, mas a acessibilidade web será sempre uma só.

Todos os conteúdos/serviços devem estar acessíveis, com acesso facilitado, da forma mais intuitiva e com menor esforço, para o maior número possível de usuários, independente de suas culturas, experiências, deficiências, sistemas e dispositivos utilizados.

5. Qual é o grande paradigma hoje em unir usabilidade, acessibilidade e padrões web?

Uma boa acessibilidade vai além de simplesmente permitir o acesso a serviços e conteúdos. Por exemplo, minha amiga Lêda Spelta, que é cega, faz compras mensalmente em um supermercado virtual. Sua compra já está cadastrada, mas para adicionar e retirar alguns produtos e realizar o pagamento, leva em torno de duas horas. Algo que um vidente (uma pessoa sem deficiência visual, que vê totalmente) com a mesma experiência que ela não levaria mais do que 20 minutos. O site parece ser acessível, mas na verdade só está “acessável”.

Nessa caso, para o supermercado virtual ser acessível de verdade, além do usuário conseguir realizar a compra (efetividade), precisa realizar as tarefas com facilidade e rapidez (eficiência), e no dispositivo e sistema que desejar (portabilidade).

É preciso entender que não basta aplicar técnicas de acessibilidade e de padrões web, é preciso garantir a acessibilidade através da validação com usuários e com melhoria contínua. Nada é acessível o suficiente que não possa melhorar.

6. Qual é o principal pecado dos sites brasileiros em termos de acessibilidade?

São muitas as heresias que prejudicam a acessibilidade web, mas classifico como sendo o pecado capital dos sites brasileiros a falta de foco. Isso mesmo, os projetos são desenvolvidos sem se saber ao certo quais são os objetivos e metas, quem são os beneficiados e suas necessidades e os quais são problemas que realmente precisam ser resolvidos.

Como esperar que um projeto web seja acessível se não se sabe quais problemas ele irá resolver e menos ainda quem é seu público-alvo? Impossível…

Identificar corretamente o alvo significa ter que investir tempo e dinheiro em coisas aparentemente abstratas, mesmo antes de começar a colocar a mão na massa. Os projetos vivem na cultura da pressa, onde todos estão sobrecarregados e sempre atrasados, muitas vezes correndo atrás do próprio rabo. Tudo é “pra ontem” e “não há tempo a perder com pesquisa, estratégia, design, testes etc”. Para sobreviver a prazos e cronogramas impossíveis, os projetos são movidos a dose cavalares de ASAP (as soon as possible – ou, em bom português, o quanto antes). Mas como qualquer droga pesada, tem efeitos colaterais devastadores, como a falta de qualidade, muito retrabalho, insatisfação dos clientes, aumento da taxa de “churn*”, desgaste da imagem da empresa, queda do lucro etc.

Assim, mesmo em projetos onde a acessibilidade faz parte da lista de requisitos obrigatórios, primeiro desenvolvem o site, para só depois implantar a acessibilidade. É como construir um prédio e depois quebrar tudo para adaptar uma rampa para cadeirantes. O resultado sempre será caro e a acessibilidade duvidosa… Uma maquiagem para inglês ver.

* Taxa do churn é a proporção dos clientes que deixam o fornecedor durante um ano. [http://wikipedia.qwika.com/en2pt/Churn_rate]

7. Muito se fala que as empresas/os chefes nao deixam que os sites sejam mais acessíveis por conta da falta de verba e tempo para desenvolver os projetos, mas até onde isso é realmente um culpado, e até onde a culpa é do desenvolvedor/designer, por não fazer uso dos padrões web e, consequentemente, criar páginas que nao são acessíveis?

Certamente os maiores culpados são as empresas/chefes que já estão totalmente viciados a trabalhar contra o relógio. Porém, mesmo correndo o risco de uma cara feia, os desenvolvedores/designers têm o dever de alertar os responsáveis que esse tipo de postura certamente causará problemas na qualidade dos projetos, além de poderem ser processados por falta de acessibilidade.

É sempre muito difícil mudar a cultura, principalmente dentro de empresas estabelecidas e que mantém uma boa taxa de crescimento e lucratividade. Mas antes que seja tarde demais, esses profissionais podem tentar convencer seus chefes e clientes aplicando testes A/B, onde possam facilmente comparar os resultados de um projeto original “A”, com um outro dentro dos padrões “B”. Ou ainda, os gestores podem ser sensibilizados ao verem uma pequena gravação com testes de usabilidade com usuários utilizando o principal produto/serviço da empresa.

Dentro do possível, é preciso sempre tentar incluir as técnicas de acessibilidade, usabilidade e padrões web em seus projetos.

8. Quais tem sido os maiores desafios para uma web acessível no Brasil?

São grandes as dificuldades, mas podemos listar três grandes desafios/barreiras que precisam ser vencidos/superados para uma web mais acessível no Brasil:

  • Conhecimento: as empresas, seus executivos e profissionais precisam saber o que  realmente é acessibilidade web, sua importância, leis, estatísticas, normas, público alvo, custos e benefícios.
  • Capacitação: após serem conscientizados, os profissionais Web precisam de treinamento para conhecerem as técnicas de desenvolvimento, validação e manutenção de sites acessíveis.
  • Cultura: o terceiro e maior desafio é mudar a cultura dentro das corporações. É preciso que as empresas incluam em suas normas, padrões e processos a cultura da acessibilidade Web, caso contrário, todo investimento se tornará inútil, volátil.

9. O que tem sido feito, na esfera governamental, para que a web seja mais acessível? E no plano privado?

Pouco tem sido feito, em ambos planos. As empresas/instituições ainda “enxergam” a acessibilidade web como um patinho feito, que só serve para aumentar os custos do projeto, limitar a criatividade e o design e atrasar o desenvolvimento. Consideram “um preço muito alto para atender um número pequeno de pessoas e que não fazem parte de meu público alvo”.

Ainda são poucos, mas a boa notícia é que existem empresas, instituições, universidades e profissionais que realmente se preocupam com a acessibilidade e começam a fazer diferença.

Um bom exemplo é o Prêmio Nacional de Acessibilidade na Web – todos@web, uma iniciativa do W3C Escritório Brasil, lançado em 2012 e que será repetido em 2013. O prêmio tem como objetivo promover nacionalmente a acessibilidade na web, para conscientizar desenvolvedores e homenagear pessoas, empresas e ações em prol do acesso de pessoas com deficiências na web. Veja mais em http://premio.w3c.br/.

Muito ainda precisa ser feito, mas um passo importante foi a criação do Decreto Lei  6.949, de 2009. Ele promulgou a Convenção Internacional da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova York, 30 de março de 2007), que passou a ter força de lei. Mais abrangente do que o Decreto Lei 5.296, ele determina que todas as empresas e instituições, de administração pública ou privada, devem assegurar o acesso a informação e a comunicação a todas as pessoas com deficiência e, a elas, devem ser oferecidas as mesmas oportunidades oferecidas aos demais.

A partir daí, empresas estatais e privadas podem ser processadas pelo Ministério Público por falta de acessibilidade. Só para ter uma ideia, em 2011 e 2012 nossa consultoria atendeu cinco grandes empresas privadas que estavam com processo devido a isso.

10. Com relação a outros países, como estamos? Muito atrasados, acompanhando bem o ritmo mundial, na frente?

O mundo está atrasado, mesmo em nações mais desenvolvidos as mudanças são lentas. O Brasil segue o caminho de países como Estados Unidos, Inglaterra, Portugal, Austrália, entre outros, com adoção de leis nacionais sobre a acessibilidade web  para empresas estatais e privadas.

O lado negativo é que no Brasil falta vontade política em fazer valer as leis e temos escassez de mão de obra capacitada para projetar, desenvolver, testar e auditar acessibilidade.

11. Como é possível pensar acessibilidade web “fora da caixa”? Como fazer diferente?

Apesar de parecer óbvio, não projetamos a “experiência do usuário”; na verdade, projetamos para a sua experiência. Essa pequena mudança de paradigma faz toda a diferença na criação e desenvolvimento de sites que atendam de verdade as necessidades das pessoas. Precisamos focar mais nas pessoas e menos nas tecnologias.

As pessoas acreditam que acessibilidade é sempre direcionada para pessoas com deficiência, mas ela não só pode como deve ser pensada para atender melhor todas as pessoas.

12. Quais são os desafios relacionados a acessibilidade nos dispositivos móveis e qual sua avaliação sobre a nova funcionalidade de assistentes pessoais (Siri e Google Now)? O que poderia tornar dispositivos móveis mais acessíveis?

O curioso com relação à acessibilidade em dispositivos móveis é que as dificuldades apresentadas por pessoas com deficiência ao utilizarem computadores do tipo desktop são muito semelhantes às apresentadas por todos nós em dispositivos móveis. Portanto, somos todos usuários diretos de acessibilidade quanto estamos usando dispositivos móveis, em movimento, com apenas uma das mãos, com baixa precisão, sem feedback, luz direta, baixo contraste e resolução reduzida, assim como o tamanho das letras, campos de formulário, links e botões.

Por isso mesmo, as técnicas e os problemas de acessibilidade são muito parecidos em dispositivos móveis e em desktop.

Algo que pode ajudar a melhorar a acessibilidade dos sistemas e sites para dispositivos móveis é o uso da técnica “Mobile First”. Ao invés de adaptar os conteúdos e serviços do desktop para o Mobile, a ideia dessa técnica é fazer exatamente o contrário: começar pela versão móvel, incluindo na interface apenas o que realmente é relevante e prioridade para os usuários, para depois projetar a versão para desktop. Como resultado, obtemos uma versão móvel otimizada para atender às especificações e necessidades dos pequenos dispositivos, e uma versão desktop mais leve e objetiva, impregnada pela simplicidade do dispositivo menor.

Com relação ao uso do Siri e o Google Now, não sou usuário e nem fiz testes com ambos, mas acredito que podem ser bem úteis para todas as pessoas, com e sem deficiência, em diferentes contextos.

13. Games hoje são utilizados não só como entretenimento, mas também como plataforma de educação (ensino de lógica, por exemplo). Como a acessibilidade é tratada nesse mercado? Ela existe? Como funciona?

Esse é um grande e promissor mercado. Hoje, com o uso das técnicas de acessibilidade propostas pela WAI/ARIA (Accessible Rich Internet Applications), do W3C, já é possível desenvolver conteúdo dinâmico e interfaces interativas bem acessíveis com Ajax, HTML, JavaScript, e tecnologias relacionadas.

Falta melhorar o suporte dos navegadores e tecnologias assistivas, mas tanto os leitores de telas quanto os navegadores têm evoluído bastante nos últimos anos, meses e, sinceramente, estou muito otimista com o futuro dessas tecnologias.

14. Você é professor, como trata o assunto acessibilidade em sala de aula? Como é a resposta/entendimento dos alunos?

Tentando um misto entre conscientização, paixão, técnica e perseverança. Sei que abraçar essa causa não é uma tarefa fácil, por isso, preciso fazer com que os alunos sejam picados pelo mosquito da acessibilidade, exatamente como fui.  E, além das técnicas, precisam de argumentos fortes sobre as vantagens da acessibilidade e por que ela não deve ser tratada pelas empresas como uma obrigação social e legislativa, mas sim como uma vantagem competitiva.

15. Qual é o papel das universidades em relação à acessibilidade? Existe pesquisa?

Um papel de extrema importância, mas certamente poderiam ser mais ativos e com resultados mais eficazes para acessibilidade digital. Um caminho seria incluir a cadeira de acessibilidade web nos cursos de graduação em Tecnologia da Informação, Sistemas de Informação, Design, Web Design e afins.

Esses profissionais não só precisam sair das universidades conscientizados da importância da acessibilidade, mas preparados para o desenvolvimento de projetos acessíveis. Por exemplo, os desenvolvedores saem de seus cursos especialistas em algoritmo, lógica, as principais linguagens de programação e tecnologias, mas desconhecem por completo as necessidades de seus usuários com diferentes experiências e habilidades. A boa notícia é que isso já começou a mudar, principalmente nos cursos de pós-graduação Latu e Stricto Sensu, onde o tema tem sido cada vez mais pesquisado.

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