Ninguém é obrigado a participar da doença de uma geração

Cresci boa parte da minha infância na roça, mais especificamente em bairro afastado de São Bento do Sapucaí (SP), e por ter tido uma educação tradicional, com meus avós maternos, posso dizer de maneira muito tranquila que contemplei a simplicidade do campo de forma direta. Acredite, eu me considero um homem de sorte por isso. E, apesar de ter tido quase tudo que uma criança poderia querer entre os quatro e onze anos, do vídeo game ao conforto material, tudo isso mesclou-se ou foi sublimado pela deliciosa pedagogia da roça. Não raro trocava meu Play Station pelas prosas de varanda, pela aventura de caçar rãs com meu padrinho, ou andar a cavalo com meus primos. Eu me recordo, hoje, de ter passado horas a fio escutando as conversas dos compadres e comadres de meus avós, principalmente da tia Cacilda e do Zé Ramos, sobre suas preocupações morais com a nova geração ‒ a minha, à época ‒, sobre as constantes altas das commodities ‒ que eles chamavam de “mantimento” ‒, sobre os donos de fazenda que pagavam cada vez menos pelo dia de serviço, sobre futebol ‒ é claro ‒, sobre a novena de Nossa Senhora das Graças e sobre as demais tradições e coisas que realmente importavam.

Ali via a perfeita simbiose entre as coisas terrenas e as coisas perenes, meus tios e tias ‒ na roça, todos que são velhos o suficiente para carregar enxada, ou terem filhos, são chamados assim ‒, conseguiam direcionar suas vidas simples através de uma constância de competências diárias, de trabalhos comuns do campo, todavia, ao final do dia, quando a família se reunia entorno do fogão à lenha, do mistério dos “causos de assombração” à homilia do pe. Zezinho, tudo se direcionava às ideias e conceitos de eternidade, sobre os valores que sustentam a realidade comum de suas vidas. Na roça, encontrei a prática da mais sofisticada filosofia, de Platão, Aristóteles, a Santo Tomás de Aquino e Roger Scruton, aprendi nos livros desses que a completude da existência humana, aquilo que nos aproxima do modelo de perfeição, trata-se de aliar a percepção racional e a prática real no cotidiano. O discurso só é verdadeiramente completo se o orador prova com sua a vida a eficácia do que ele prega; a verdade de fé só é realmente verdade se encontra, na coesão teológica, o seu sustento e, na prática dos fiéis, a sua prova; a hipótese só pode ser levada a sério se atravessar incólume o campo tortuoso da experimentação; crença e prática, fé e ação.

Minha avó Emília contava a mim e aos meus primos que meu avô, Otávio, acordava de madrugada para ler a Bíblia e pedir a Deus que providenciasse a comida e o sustento de seu lar, e, pela manhãzinha, ia trabalhar a fim de que o sustento viesse não meramente pela sua fé, mas também pelas obras que ele era capaz de fazer por si mesmo. Não foram poucas as vezes que eu vi, após um dia todo de trabalho árduo no campo, dezenas de fiéis do bairro de Cantagalo se dirigirem à igreja da localidade para adorar e clamar para um Deus comum, tão próximo ‒ seja por estar em seus altares particulares, ou nas tradições mais arraigadas daquela localidade ‒ que, por vezes, parecia-me que Jesus tinha nascido por ali mesmo, em algum dos “paióis” onde meus tios guardavam milhos para os cavalos e galinhas, que Nossa Senhora e São José porventura poderiam morar ainda naqueles dias em alguma daquelas casas distantes nos morros que até então não havia subido.

Esse elo de simplicidade e proximidade que une a ética e a prática cotidiana, aquilo que São Bento adotou como modelo de santificação, ora et labora, parece-me ser a via da coerência que tanto a modernidade clama no silêncio após asilar ideologias completamente desconexas, ideologias essas que, na ânsia de agasalharem uma liberdade histérica, enceram a humanidade num manicômio bizarro de ideias e políticas sem a mínima arrumação racional. Hoje a humanidade está travando uma guerra para convencer a todos que a genética nada tem a ver com a nossa consciência, que é fascismo estrutural pedir coerência entre o discurso e a prática no campo social. É perceptível, nos olhos dos jovens, um pedido de socorro existencial; uma geração que, a cada vez que se debate no lamaçal político que o progressismo fez de ética social, demanda, ainda que sem saber, por uma ordem coerente que dê sentido para além dos resultados de urnas e aplausos de militâncias. Os jovens progressistas que encontro no debate público anseiam por mais estabilidade do que meus tios de São Bento, precisam muito mais da tradição e da fé como sustento moral do que meus avós um dia demandaram, eles só não notaram isso ainda.

Aquela simplicidade da roça me mostrava um mundo muito mais racional, não somente compreensível, mas praticável e desejável; encontrei muito mais felicidades e amores, sofisticação social e complexidades éticas naqueles cantos afastados do que na maioria dos lugares e lares, confrarias e universidades que frequento na grande cidade. Todos os entretenimentos, tecnologias e prazeres não completam a existência com aquele sentido de coesão que eu via em São Bento. Por quê? Acho que minha tia Filomena tem a resposta: certa vez, ela me disse uma frase tão racionalmente aprimorada e profunda, que nem mesmo a mais alta filosofia da universidade que frequentei pôde alcançar até hoje. Ao ouvir a rádio que noticiava o assassinato de um casal pelo próprio filho em São Paulo, a tia Filomena me disse: “O mundo tá doente, meu filho. Ainda bem que não somos obrigados a participar dessa doença, não é mesmo?”. Depois de muito tempo li algo parecido em Jordan Peterson e Mario Ferreira dos Santos. A desordem, a incoerência e o caos são ofertas de mentes e grupos que se vangloriam nesse charco de bizarrices. Participar desse caos, adotar suas linguagens, moralidades e dobrar-se a eles, no entanto, é uma escolha. Ainda que venham repressões, multas e grilhões, participar ou não desse circo continua sendo uma escolha; e, se o preço da coerência e da defesa da verdade for renegar e contradizer a realidade torta que me oferecem, somando assim delitos morais ante a mais desfigurada ética progressista, pois bem, que seja, eu pago esse preço. A mim basta a simplicidade da coesão, a calmaria de consciência repousada no eterno.