O liberalismo à brasileira cultua Milton Friedman e adora protecionismo

O liberalismo à brasileira, versão nacional do cada vez mais comum liberalismo de fachada, é o irmão bastardo do protecionismo que desde sempre oferece salvaguardas a praticamente todos os setores da nossa economia. Com discurso bem diferente da prática, finge devoção a Milton Friedman ao mesmo tempo que cultua subsídios ou barreiras comerciais. Como sou radicalmente contra barreiras intelectuais, ofereço ao amigo que prestigia essa coluna a oportunidade de escolher o setor da economia que ele quiser para que possamos entender como funciona o liberalismo à brasileira. Bem, para começar, vamos então ao tema da moda, a tentativa de acordo comercial MercosulUnião Europeia que se arrasta desde 1999.

O êxito nas negociações apresentaria ao mundo um novo bloco comercial com o formidável PIB de cerca de US$ 17 trilhões. Em teoria, quase todos possíveis sócios dessa nova área de livre comércio eram favoráveis ao acordo e ao incremento das trocas de bens e serviços oferecidos por mais de 30 países. O economista David Ricardo se orgulharia! Pois é. Eram favoráveis. Eis que na véspera de cada um ratificar esse apoio aparece o presidente francês para dizer que as condições eram ruins e que estava fora. O “au revoir” da França claramente é uma forma de proteção aos agricultores locais, que temem ser varridos do mapa e dos mercados pelo pujante agronegócio sul-americano, em especial o brasileiro.

Não custa lembrar que Emmanuel Macron vem do sistema financeiro, em tese um setor bem aberto à concorrência selvagem. Ele fez próspera carreira como executivo do tradicional banco Rotschild. Mas na hora de demonstrar que era um liberal da gema, optou pelo protecionismo cínico em favor de seus eleitores, digo, agricultores. Por aqui, se o agronegócio demonstra apetite pelo acordo, a indústria pensa e age de forma diferente. Em tese, os industriais brasileiros sempre clamaram por maior inserção nas cadeias globais de produção. Na prática, defendem a maior abertura possível, desde que no setor do vizinho. Não à toa estavam preocupados com o possível acordo com os europeus, já que poderiam perder fatias do milionário mercado de compras governamentais.

Curioso lembrar que o maior volume de subsídios na forma de renúncia fiscal já visto na história desse país foi um filho parido da coligação da esquerdista Dilma Rousseff com os capitalistas de vários setores. Dessa aproximação que deu match nasceu em 2011 a desoneração que um outro governo petista tenta derrubar. No inexplicável Brasil, um governo com DNA à esquerda tenta implodir essa rede de subsídios, enquanto empresários, liberais de mercado e sindicalistas que não querem largar o osso saem em defesa de privilégios que beneficiam 17 setores.

Bem, como esse é um país em que o tamanho do Estado é atacado com a mesma parcimônia com que todos recorrem a ele em busca de vantagens, o pujante agronegócio se beneficia do generoso Plano Safra e de impostos mais modestos, banqueiros quebrados já foram socorridos pelo Proer, a elite do funcionalismo tem salários nababescos (enquanto a imensa maioria precisa contar moedas), governadores liberais elevam alíquotas de impostos e até mesmo as igrejas fazem lobby por benefícios fiscais. Por Deus! No liberalismo à brasileira, Milton Friedman é mais grife do que prática. O discurso da turma é como o do agiota Shylock, dono da lâmina afiada para cortar a carne. O problema é que o único tipo de carne que resta sem proteção é a dos esquálidos sem lobbies.