O que não é democracia? Podemos usar o Brasil para responder a essa questão

Na filosofia, aprendemos desde cedo que, por vezes, é mais fácil definir o que não é algo, do que o que é. A democracia ocidental, na minha opinião, não está nesse hall, pois defini-la de forma simples ‒ sem ser simplório ‒ não é algo lá muito exigente nem demanda extrema erudição. Eu, por exemplo, a definiria da seguinte maneira: “trata-se do modelo político-estatal que se ancora, primordialmente, sobre o império das leis e da liberdade individual; priorizando de forma evidente, para seu correto funcionamento, a livre escolha popular das lideranças governamentais, o resguardo constitucional das heranças morais comunitárias e das regras jurídicas, tudo sob a luz da ética da tradição ocidental”. Todavia, para efeito de ilustração, por força dos acontecimentos recentes, serei impelido a apostar na didática simplória, e até mesmo banal, para, talvez, ao final deste artigo, aclarar para os defensores do regime autoritário em que vivemos que não é bom, normal e aceitável viver sob as ações cada vez mais ditatoriais do nosso Judiciário.

Processar um humorista por piadas ofensivas não é democracia. Independentemente do bom gosto das piadas de Léo Lins, da asquerosidade do que é dito por ele a fim de encontrar o riso alheio, a democracia só sobrevive caso haja liberdade plena para se dizer até mesmo tais absurdos. A democracia ‒ e isso é unanimidade entre os tradicionais eruditos sobre o tema ‒ só sobrevive se estiver resguardada pela atmosfera da resiliência e da tolerância, por vezes heroica, ante o que o outro tem a dizer, sendo garantido que ele não seja previamente calado por nada nem ninguém. O processo de calúnia e difamação, após séculos de maturação intelectual, jurídica e social, foi a forma justa que nosso estado de direito encontrou para punir falas que maculam a honra alheia. Todavia, dizer que algo não deve ser dito previamente foi o modelo que ditaduras como a da União Soviética e a da Alemanha nazista sempre adotaram.

Cassar Dallagnol, usando uma estapafúrdia desculpa pseudojurídica, não é democracia. Mudar o entendimento para enquadrar um confesso e evidente desafeto político não é democracia, é antes o que tribunais paralelos de diversas revoluções fizeram no século XX. Independentemente se gostamos ou não de alguém, se essa pessoa é ou não aprazível e, até mesmo, desejável na sociedade, a garantia jurídica de um julgamento justo, baseado em um sistema jurídico não alienável às vontades dos juízes, é o MÍNIMO que se espera em uma democracia. O que fez do sistema jurídico democrático uma instituição louvável no decorrer da história foi a sua capacidade de ser imparcial e estoico mesmo ante os piores e mais condenáveis dos indivíduos. Tal garantia jurídica de imparcialidade, hoje, está sob as mãos de juízes claramente ideologizados e partidários. Há pouco tempo isso seria mais do que o suficiente para declararmos que a democracia estaria sequestrada, em perigo; entretanto, atualmente, achamos que as atuações parciais desses juízes são antes a garantia da própria democracia. Algo tão absurdo quanto assustador.

Aposentar compulsoriamente uma juíza por uma opinião está absurdamente distante de ser algo democrático. A juíza Ludmila Lins Grillo, após decisão do TJ-MG, teve sua carreira como magistrada forçosamente encerrada após criticar, em 2020, o inquérito das fake news, um dos mais absurdos e autoritários de toda a história brasileira ‒ condenado até mesmo por juristas de ampla tendência à esquerda. Fora do campo paranoico de Alexandre de Moraes, e dos jornalistas e comentaristas que estão sempre a postos a fim de justificarem o injustificável, tal inquérito não encontra um ponto de apoio legal, nem uma sustentação popular efetiva para se manter, se solidificou antes por pura birra ditatorial de um juiz manhas autoritárias. Um togado instaurar um inquérito, agir como delegado, promotor e juiz não encontra sequer um exemplo na história da democracia; é, em si mesmo, o sulco do atual e infreável avanço despótico no Brasil. Por fim, o que temos aqui é a punição clara por uma opinião, e conciliar isso com a democracia não passa da mais desesperada esquizofrenia mental que assistimos por aqui hoje em dia.

Sim, atualmente a legalidade funciona sob os batuques de juízes que diariamente destroem o sistema jurídico brasileiro. Trago apenas esses três casos porque são destas últimas duas semanas, sequer falarei dos demais atos soviéticos de meses e anos atrás. Para desespero da liberdade, não se enxerga ainda nenhuma espécie de recuo à normalidade judicial no país. O que se vê, ao contrário, é o progresso incessante da tirania jurídica, o afastamento constante do Brasil daquilo que chamamos de “democracia real”.

Hoje temos duas “democracias” no Brasil, a que tenta sobreviver mutilada após constantes golpes de morte do Judiciário ‒ Judiciário esse sustentado por uma vagabunda retórica da mídia tradicional ‒; e a democracia fantasiada, o teatro “de faz de conta” dos tribunais superiores do país, que a cada semana renovam o pedido dos tiranos aos jornalistas vendidos, ideólogos e esclarecidos do Kremlin: “Vocês fingem que todos esses atos ditatoriais são em defesa da democracia, e nós deixamos vocês em paz. Pode ser?”. E, em uníssono, semana após semana, há pelo menos dois anos, escutamos o renovo dos atos autoritários e das estapafúrdias defesas dos escudeiros de César. O que não é democracia? Hoje podemos usar o Brasil para responder essa questão. Não é uma democracia um país no qual não se pode ter um afrontoso opositor na Câmara, que não pode ter juízes criticando inquéritos absurdamente inconstitucionais nem humoristas fazendo piadas ofensivas. Um país assim vive certamente sob outro regime, não o democrático. 

E, vamos lá, se não concorda comigo, gostaria de vê-lo defendendo a censura prévia de piadas, a extinção da magistratura de uma juíza após uma crítica jurídica a um inquérito e a cassação de um deputado por um tribunal incompetente para tal, com justificativas enviesadas e, ao mesmo tempo, os princípios basilares e inalienáveis da democracia como liberdade individual e império das leis. Faria até pipoca para assistir a isso. Eis, por fim, o terraplanismo dos defensores dos nossos juízes despóticos, o negacionismo bizarro dos esclarecidos que apostam num “autoritarismo necessário”. Você pode defender a democracia ou os recentes e recorrentes atos do Judiciário brasileiro, os dois, definitivamente, não dá!