Pelé elevou futebol à condição de paixão nacional, eternizou camisa 10 e está no Olimpo do esporte

“Hoje não trabalhamos, porque vamos ver Pelé“. É praticamente impossível mensurar o tamanho de Edson Arantes do Nascimento, mas os dizeres de um letreiro exposto pelo Teatro de La Anda, no centro de Guadalajara, no México, durante a Copa de 1970, ajudam a explicar a importância do Rei para o futebol. Maior jogador de todos os tempos, Pelé morreu nesta quinta-feira, 29, aos 82 anos, após uma luta contra um câncer de cólon. Único jogador a conquistar três Copas do Mundo e o primeiro a receber sete bolas de ouro, troféu da revista France Football destinado ao melhor jogador de uma temporada, o eterno craque deixa um legado inigualável e que justifica o status de “Player of the History” (jogador da história, em tradução livre) recém-adquirido.

O ídolo é uma espécie de prenúncio do futebol moderno. Na era dourada da seleção brasileira, entre 1958 e 1970, quando o país conquistou três Copas do Mundo, Pelé se destacava, entre outras coisas, pela condição física invejável, que destoava dos demais companheiros. Era um atleta, na acepção mais pura da palavra. O repertório do camisa 10 também impressionava. Os 1.282 gols foram marcados das mais variadas formas: de direita, de esquerda, com a cabeça, de falta ou de pênalti. O futebolista perfeito, como definiu o jornal espanhol El País. Edson Arantes do Nascimento estabeleceu uma relação de amor e carinho com a bola: empilhou taças, enfileirou adversários, arrancou aplausos por onde passou, elevou a modalidade à condição de paixão nacional e garantiu seu espaço no Olimpo do esporte. Pelé viveu o apogeu de sua carreira há cerca de 40 anos, mas seu desempenho dentro das quatro linhas fomenta debates até hoje. Quem pode se juntar a ele na mesa dos maiores do futebol? Quem ultrapassará a marca das quase 1.300 bolas na rede? São dois dos questionamentos que simbolizam a grandeza da Majestade brasileira. “Nunca haverá outro Pelé. Eu nasci para o futebol assim como Beethoven para a música e Michelangelo para a pintura”, disse à revista France Football.

Pelé é o responsável por criar – e eternizar – a mística em torno da camisa 10. Em 1958, na Suécia, o caçula do elenco, com 17 anos, colocou o Brasil no mapa do futebol do mundial ao marcar um antológico gol na final da Copa do Mundo daquele ano contra os anfitriões, vencida pelos brasileiros por 5 a 2. Aos nove minutos do segundo tempo, Nilton Santos cruza, Pelé mata no peito, chapela o rival e fuzila o gol de Svensson. Uma obra-prima. Primeira das cinco estrelas da equipe canarinho. Os feitos de Edson Arantes do Nascimento com a bola nos pés alçaram o número a um patamar único, transformando-o no sonho de consumo de todo e qualquer jogador. Maradona, Zico, Messi e Neymar. Todos usam ou usaram a dez, graças a Pelé. O maior futebolista da história também é personagem central da história do Santos Futebol Clube, onde estreou com apenas 15 anos. Dos 1.282 gols, 1.091 foram marcados com a camisa da equipe paulista, a única que defendeu no Brasil. Foi pelo Peixe que o atleta ganhou 26 dos 37 títulos de sua carreira. No total, foram 10 Campeonatos Paulistas, seis Brasileiros, quatro Rio-São Paulo, duas Libertadores, dois Mundiais, uma Recopa Mundial e uma Recopa Sul-Americana), 10 com a seleção brasileira (três Copas do Mundo, três Copas Oswaldo Cruz, duas Copas Roca, uma Taça Atlântico e uma Taça Bernardo O’Higgins) e uma taça da liga norte-americana pelo Cosmos, onde se aposentou.

Vestindo a camisa branca, Pelé e o Santos conseguiram um feito histórico: pararam uma guerra. Em 1969, o Peixe viajou para uma excursão pelo continente africano. À época, a Nigéria passava por uma guerra civil, e a região de Biafra buscava a sua independência. O episódio é cercado por mitos (há quem diga que o cessar-fogo era uma tradição em dias de jogos e que a cidade já não estava mais sob o controle das forças na ocasião), mas a partida terminou com vitória do Santos por 2 a 1, em um confronto lembrado com carinho pelo ídolo que se despediu do Brasil nesta quinta. “Um dos meus grandes orgulhos foi ter parado uma guerra na Nigéria, em 1969, em uma das várias excursões que o Santos fez pelo mundo. Nós tínhamos um amistoso marcada na Cidade de Benin, que estava no meio de uma Guerra Civil. Só que o Santos era tão amado que as partes aceitaram um cessar-fogo no dia da partida. Ficou conhecido como o ‘Dia em que o Santos parou a guerra’”, escreveu o Rei em suas redes sociais, em 2020.

Jogadores perfilados em amistoso

Foto da equipe do Santos que disputou amistoso na Nigéria, em 1969

O amistoso na Nigéria é tão emblemático que virou música para a torcida. “O meu Santos é sensacional. Só o Santos parou a guerra. Com Rei Pelé Bi Mundial, o maior time da Terra”, cantam os santistas. Pelé também inspirou a escolha do nome da principal torcida organizada do Santos, a Torcida Jovem. Em suas entrevistas, o atleta sempre se referia carinhosamente à “jovem torcida do Santos”. Para retribuir o carinho, os integrantes da organizada fizeram uma vigília na frente do Hospital Albert Einstein, no início do mês de dezembro, e estenderam faixas com homenagens ao maior jogador de todos os tempos.

Foi também em 1969 que Pelé atingiu a expressiva marca de 1.000 gols na carreira. Às 23h23 do dia 19 de novembro daquele ano, no Estádio do Maracanã, um dos mais sagrados templos do futebol, o camisa 10 do Santos venceu o goleiro Andrada, do Vasco, e fez o mundo parar por um instante. O gramado foi invadido por jornalistas, torcedores e atletas das duas equipes. Emocionado e carregado nos ombros, fez uma dedicatória que entrou para a história. “Dedico este gol às criancinhas pobres do Brasil. A gente tem de olhar para elas”, disse à rádio Jovem Pan. O time da Vila Belmiro venceu os cariocas por 2 a 1, em partida válida pelo torneio Roberto Gomes Pedrosa.

Familiares de Pelé costumavam dizer que havia uma única certeza sobre o Rei: sua paixão pelo Santos. Não por acaso, o último adeus ao ídolo acontecerá no gramado da Vila Belmiro, onde o eterno camisa 10 desfilou seu talento de 1956 a 1974. O velório acontecerá a partir da segunda-feira, 2, e será aberto ao público. Na terça-feira, 3, será realizado o cortejo pelas ruas da cidade, que passará pelo Canal 6, onde mora sua mãe, dona Celeste, seguindo até o Memorial Necrópole Ecumênica, para o sepultamento reservado aos familiares. A partir de agora, Edson Arantes do Nascimento fará tabelinhas no céu com Coutinho, um de seus principais parceiros de ataque no Santos. Pelé, no entanto, será eterno, e seguirá inspirando as próximas gerações.