Perfeição democrática prometida por Lula e Moraes é a utopia dos autoritários

Semana passada, até mesmo os jornais norte-americanos assumidamente progressistas, o The New York Times e o Wall Street Journal, destacaram a censura crescente que há no Brasil; anteriormente, o também norte-americano e progressista Gleen Greenwald já havia feito o mesmo em relação às decisões judiciais injustificáveis de Alexandre de Moraes ‒ apoiado agora pelo novo governo. Uma das questões que açoitaram minha alma após tais textos e denúncias é a seguinte: “se até os norte-americanos progressistas estão enxergando a censura no Brasil, por que a grande maioria dos nossos jornalistas e esclarecidos formadores de opinião não estão? Ou pior: mesmo enxergando o controle estatal crescente das opiniões e críticas de liberais e conservadores, mantêm-se vergonhosamente calados?”.

Obviamente, tenho que fazer justiça, afinal, nessas últimas semanas, muitos parecem ter começado a bocejar e a sair de seus apagões da dignidade, tomando consciência de que “a defesa da democracia” não se aplica mais quando comentaristas políticos e demais cidadãos são caçados por criticarem políticos e santidades do Judiciário. Muitos jornais, em seus editoriais, começam a esboçar agora os seus tardios e quase hipócritas sustos ante a crescente autoritária do Judiciário e do Executivo, até mesmo atores globais começaram a sair do silêncio. No entanto, tudo é ainda irrisório, não passa de farelos de críticas e sussurros de desaprovação; e é justamente esse silêncio, entrecortado por ruídos quase imperceptíveis de críticos cada dia mais perseguidos, que me tiram a paz.

Como aqueles que me seguem sabem, uma das minhas sanhas literárias são aqueles escritos e confissões de ex-exilados políticos, de pessoas que sofreram na pele, na consciência e até mesmo em suas almas a perseguição política no século XX. Também consumo de forma ensandecida ensaios e tratados de cientistas políticos e demais observadores que dedicaram suas vidas a entenderem o fenômeno do autoritarismo político, estudava tudo isso muito antes de começarmos este nosso atual café da manhã com censura.

Gosto de tentar entender o momento autoritário através dos olhos e mentes daqueles que mais sofreram perseguições e censuras, daqueles que submergiram até as fossas e aterros da barbaridade política a fim de esclarecer seus modus operandi, na esperança de que a humanidade nunca mais caia lá. As literaturas que consumi nos últimos anos sobre o tema, de Mao: a história desconhecida ao O diário de Anne Frank; de A fome vermelha: a guerra de Stalin na Ucrânia ao Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração; de Luvas Vermelhas ao Arquipélago Gulag; de A Infelicidade Do Século a Eichmann em Jerusalém, todos eles são unânimes em nos mostrar uma característica básica e quase invisível desses terrenos de hostilidade máxima à liberdade e aos indivíduos, característica essa muito ignorada, mas, todavia, assustadoramente constante em todas as ditaduras e autoritarismos: a massa silenciosa acovardada e/ou complacente.

Arrisco-me a dizer que não houve sequer uma ditadura que não contou com a obediência medrosa e, por vezes, diligente, da grande massa de influenciadores e homens de expressão de seus dias. Vladimir Tismaneanu e Isaiah Berlim analisaram em suas obras esse apogeu de fraqueza ante o absurdo, tentaram explicar como a fé depositada em ideologias pôde infectar e até destruir o mais profundo e humano julgamento moral do homem. Hannah Arendt, por sua vez, embasbacou-se ante as justificativas comuns e triviais dos nazistas nos tribunais. Homens e mulheres complacentes que, ao serem confrontados com as atrocidades de seus atos ou consentimentos, escondiam-se convenientemente atrás de um inacreditável “estava cumprindo ordens”, ignorando e assassinando, além das suas vítimas, quaisquer rastros de autonomia e consciência neles próprios. Mas foi Alain Besançon, em A infelicidade do século, quem melhor resumiu em poucas palavras o que acontecia com essa massa indulgente: “Em uma intoxicação absoluta de consciência moral, ele[s] destrói[oem] em nome da utopia categorias inteiras de pessoas”.

Acredito piamente que tal entorpecimento moral se dá inicialmente na base dos goles autoconsentidos na garrafa do absurdo ideológico. Isto é, a cada escalada de autoritarismo que se dá no país ‒ seja por uma justificação egoísta a fim de não contradizer suas afirmações passadas ou por força de convencimento da manada ‒, os complacentes e covardes encontram frestas inexistentes de plausibilidade e aceitação nas barbaridades concretizadas, fazendo assim com que esse novo absurdo seja acomodado e justificado na consciência adormecida desse indivíduo, mesmo ante o mais gritante e autoevidente abuso perpetrado. A cada gole nesse autoritarismo o indivíduo se encontra mais envolto e cego para a realidade do absurdo que está sendo realizado diante do seu nariz, ao ponto que, num determinado momento, ele ‒ conscientemente ou não ‒ anestesia sua capacidade de julgamento moral e de percepção a fim de manter coerente a sua ideologia e narrativa. Em A rebelião das massas, Ortega Y Gasset chamou esse processo de “acanalhamento”; Eric Voegelin, em História das ideias políticas – Volume III, chamou de “sacrificium intellectus” [sacrifício do intelecto]. Ou seja, diante dos absurdos autoritários, somente os cínicos e os alienados podem encontrar razão.

Obviamente ‒ é bom afirmar ‒ não estou comparando o nazismo e o comunismo soviético ao que estamos passando efetivamente agora no país, mas o germe do absurdo político é sempre o mesmo, a forma como ele nasce, se instala e cresce não muda, pois o autoritarismo, ainda que manifestado em graus menores, é parte da mesma substância doentia. Doença, aliás, que pode evoluir sim aos padrões demoníacos de outras eras, não se enganem com promessas de censuras e atos autoritários com prazo de validade; o problema do vigia é achar que, porque muitas noites passaram sem incômodo, todas as noites seguintes também serão assim.

A minha esperança, todavia, está no fato de que somos seres racionais, capacitados a compreendermos absurdos e recusá-los se, desde cedo, acordarmos de nosso torpor ideológico e passarmos a enxergar a realidade como ela é ‒ mesmo que um dia tenhamos apoiado tais absurdos. Não existe ditadura do bem, por mais pura e convincente que seja sua propaganda pró-democracia; esse suposto alvejamento da democracia nacional esconde um elemento de perseguição perigoso demais para ser assistido em silêncio, essa perfeição democrática prometida por Lula e Moraes é a própria utopia dos autoritários. Como disse Isaiah Berlim em Uma mensagem para o século XXI, alertando-nos até onde a escalada de absurdos políticos pode alcançar: “Há homens que matam e ferem com uma consciência assaz tranquila sob a blindagem de palavras e escritos daqueles que possuem a fé inabalável de que a perfeição pode ser alcançada”. Não paguemos para ver do que os autoritários são capazes. Calar-se ante o nascituro da tirania não devia ser uma opção para aqueles que entendem que nenhum mal político nasce gigante. Por fim, o mal pode até ser uma pura banalidade ‒ como dizia, desconcertada, a filósofa Hannah Arendt ‒, mas também não tenho dúvidas de que o mal político costumeiramente se apoia no vazio moral da covardia dos medrosos, no silêncio vergonhoso dos complacentes.