Quando não sobrar mais nada dos bairros, mercado imobiliário terá de se virar para vender um charme que não existe mais

Poucos metros me separam do luminoso em frente a uma obra que, após demolição abençoada pelas regulações urbanas, expõe uma frase que diz mais ou menos o seguinte: “A gente inventa e você se reinventa”. É isso: testo minha capacidade de resiliência diariamente para não adoecer física e mentalmente frente à destruição de vilas, ruas e todo o bairro da São Paulo onde moro. Sou favorável ao adensamento urbano. É importante para o cidadão que a cidade seja compacta, menos espalhada. Os recursos dos impostos e taxas são mais bem aproveitados quando mais gente utiliza o que já existe: distribuição de água tratada, coleta de esgoto, transporte público, postos de saúde, escolas, delegacias. Desnecessário construir mais: basta utilizar o que está ocioso. Mas como, para quem, por quem? Verdade seja dita: se da cidade não sobra identidade, personalidade alguma, não sei nem quem sou. Desaparece a cidadã com seu corpo, pensamento político. Vejo-me induzida pelas empresas que compõem o ecossistema imobiliário associadas à prefeitura (prefeito, vereança, indicados e funcionários públicos) a transmutar-me em espectador-consumidor para poder tolerar, ao menos, a destruição horrenda de ruas e bairros inteiros que vivo no meu cotidiano. 

Em coluna publicada recentemente no Estado de S. Paulo, o escritor Marcelo Rubens Paiva descreve lembranças de uma cidade em que predominavam fileiras de casinhas, pomar plantado no fundo do quintal, minúsculos jardins enfeitando a frente das janelas e uma garoa fina, que acinzentava a paisagem. Às suas lembranças, acrescento as minhas: comprar ovos na vizinha da frente, brincar na rua, sentar-me na calçada com os amigos no final de tarde, aguardando o jantar e a hora de dormir. Não sou saudosista. A permeabilidade dos jardins, a abundância da vegetação, talvez reflexo do passado rural, o trânsito quase ausente, o tempo correndo mais lento e a convivência entre pessoas teciam uma rede delicada de relações nas quais não apenas a água da chuva era naturalmente absorvida ao longo das horas, mas, também, a sensação de pertencimento ao lugar e de acolhimento estavam impregnadas em mim, recordações que ainda hoje me transmitem paz. 

O erro do Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014 repetiu-se e continua gerando a demolição desenfreada de áreas antigas: o que aconteceu com os Planos de Bairro? Por que não foram realizados antes da revisão do Plano Diretor? Se a gestão democrática é um direito da sociedade, como serão atendidas as demandas dos moradores locais? Suas vozes não são ouvidas por ninguém. Sem os Planos de Bairro realizados a partir da parceria com as associações, conselhos participativos, moradores e trabalhadores das ruas que estão sendo atingidas pela voracidade do mercado imobiliário, a revisão do PDE passa como um rolo compressor sobre o cidadão, que, como bom pagador de taxas e impostos, espera da prefeitura ser ouvido nas questões locais e que dão identidade ao lugar. Sensação de pertencimento, convívio social não são “banalidades”. Direito à memória, às características locais, é prioridade em cidades cujos prefeitos e demais lideranças priorizam pessoas, não apensas empresas.

Quando viajamos, buscamos conhecer as características do lugar. Suas tradições, seu jeitão, as ruazinhas, o arranjo dos prédios e casinhas, o comércio local e os comportamentos das pessoas: cultura local, enfim. Ao demolir o que confere personalidade ao lugar, o que o transforma em único, não sobra nada para vivenciar ou até vender como imagem para colocar nos outdoors e estandes de novos empreendimentos. As imagens andam reproduzindo situações mentirosas, “fake”, no sentido literal da palavra. Só chamando profissionais de marketing para “turistificar” o bairro com suas ilustrações fantásticas por empresas que atuam como a Disney Imagineer Co. Consumiremos ilustrações e ambientes criados a partir da percepção e anseios dos consumidores/cidadãos. E mais: se o lugar já foi demolido, tudo bem. Por que não vivenciar uma experiência imersiva dos antigos bairros e ruas comerciais por meio de elementos visuais, sonoros e sensoriais, utilizando-se a tecnologia holográfica?

Se a realidade não existe, a gente inventa. E o consumidor/cidadão se reinventa. A realidade aumentada parece a solução mais adequada para quem comprou “o charme” do bairro que deixou de existir. Depois que o ecossistema imobiliário, associado às regulações, tiver consumido o que de mais autêntico, original e cheio de vida oferecem à população os bairros de Vila Madalena, Vila Mariana, Pinheiros, Moóca, Lapa e tantos outros, talvez a solução mais adequada ao morador seja, como sugere o letreiro brilhante no estande de vendas, a reinvenção da realidade.

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