Sem política de longo prazo, Brasil não avançará em cidades inteligentes, diz NEC

Elias Reis, head de cidades inteligentes da NEC, avalia como o Brasil trata conectividade nos espaços urbanos
Elias Reis, head de cidades inteligentes da NEC Brasil (crédito: Divulgação/NEC)

O Brasil demorou para perceber que tecnologias de conectividade poderiam aperfeiçoar o fornecimento de serviços públicos e tornar a vida da população mais confortável. No entanto, caso estabeleça políticas de longo prazo, projetos de cidades inteligentes podem vencer um dos principais obstáculos para sair do papel: a descontinuidade de medidas eficazes.

Em entrevista ao Tele.Síntese, o head de cidades inteligentes da NEC Brasil, Elias Reis, destaca que o País já dispõe de legislação adequada para implementar conectividade inteligente nos espaços urbanos. Contudo, desencontros políticos, escassez de conhecimento sobre tecnologia e obstáculos para parcerias entre os setores público e privado ainda freiam os avanços nessa área.

“A diretriz começa lá em cima. Então, uma vez que se tenha uma diretriz estabelecida, a necessidade de implementação começa a fluir nos estados e nos municípios. Existe um grande projeto para os próximos quatro anos para que as cidades se tornem cada vez mais conectadas com o governo, e o governo com as cidades”, aponta Reis.

No que diz respeito à consolidação de projetos de cidades inteligentes, o diretor da NEC também comenta sobre a eventual contribuição do 5G, as barreiras enfrentadas no País e os bons exemplos do exterior.

Confira entrevista, a seguir.

Tele.Síntese: O que, de fato, define uma cidade inteligente?

Elias Reis, head de cidades inteligentes da NEC Brasil: É um conceito amplo, tanto que cada corporação tem uma visão diferente para trabalhar com essa nomenclatura. Tem empresas que focam mais em mobilidade, entidades privadas ou grandes cidades, como é o caso da NEC. Porém, o conceito de cidades inteligentes é um só: fazer com que a cidade seja mais tecnológica para atender às mais variadas necessidades da população.

Embora o nome seja meio futurista, existe um contraponto. A ideia é que a população também seja inteligente. Não adianta ter inúmeras formas de conectividade, como câmera e sensores, ou colocar essa cidade em um patamar de excelência, se a população pouco desfruta desses serviços.

Então, quando falo em cidade inteligente, tenho que entender o processo em 360 graus e de duas formas: que o cidadão seja atendido versus as ações do poder público.

Tele.Síntese: Quais são os modelos de referência de cidades inteligentes no mundo?

Reis: Hoje, quando falamos de inteligência de cidades em nível global, uma das principais seria Singapura. Ela tem revolucionada a forma de interação com o cidadão, utilizando Internet das Coisas (IoT) cada vez mais para integração.

O mais interessante – pegando Singapura, assim como Helsinque, na Finlândia, Zurique, na Suíça, e Oslo, na Noruega, enfim, ainda estamos falando de cidades em países de IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] altíssimo – é que todas essas cidades têm em comum a implantação dessa tecnologia de modo que lá na ponta o beneficiado disso é sempre o cidadão.

Em Singapura, por exemplo, fizeram vários casos para viabilizar o atendimento da saúde via videoconferência para que a população não precise sair de casa. A mesma coisa para meios de pagamento para o transporte público, seja por aplicativo, seja por aproximação. Isso facilita ao não desembolsar dinheiro ou qualquer outra coisa ao entrar em um meio de transporte.

Podemos citar exemplos de iluminação na Suíça e outras formas de preservação do meio ambiente e da qualidade do ar, como feito em Oslo. São referências em utilização da tecnologia aplicadas ao cidadão.

Tele.Sintese: Em que estágio o Brasil se encontra nesta pauta atualmente e temos alguma cidade que mereça destaque?

Reis: Costumo dizer que o Brasil começou a lição de casa um pouco mais tarde. A Argentina, o Chile e o Uruguai, por exemplo, já têm cidades com um bom desenvolvimento, desde 2007 ou 2008, de implantação de câmeras. Não que o Brasil não tenha, mas esses países têm um conceito um pouco mais voltado à questão de bem-estar social. O Brasil começou, de fato, a batalhar por essa corrida por volta de 2016 e 2017.

Vale destacar a certificação de São José dos Campos, a única cidade inteligente [brasileira] a nível mundial. Recebeu certificações da ISO, que no Brasil é regida pela ABNT [Associação Brasileira de Normas Técnicas]. Hoje, ela serve como referência para outras cidades, até por bom funcionamento, qualidade de vida e IDH.

Tele.Síntese: Por que os nossos vizinhos largaram na nossa frente?

Reis: Entendo que se deve mais ao fato de a população ter cobrado mais o Poder Público por ações emergenciais. Por exemplo, um case da NEC em Tigre, na região de Buenos Aires. A cidade tinha um grande número de roubos de veículos e de violência. O Estado pouco tomava a iniciativa de fazer o controle disso.

Então, a população, em cima de cobranças consecutivas sobre a prefeitura e os líderes governamentais, fez com que o Estado tomasse a iniciativa de criar um fundo de segurança. A partir de então, desenvolveu-se um sistema de segurança que foi replicado em outras cidades. Mas o que quero dizer é que tudo começou pela cobrança da população para reversão desse quadro.

Então, acho que o Brasil começou a cobrar um pouco mais tarde. Hoje, nós vemos uma movimentação crescente da população no interesse pela política e pelas ações do Poder Público. Mas, até um tempo atrás, não era bem assim.

Tele.Síntese: Quando falamos em governo, alguma esfera de poder é mais responsável pela implantação de cidades inteligentes?

Reis: As ações são diferentes, porém, devem estar interligadas. Digamos que o interesse do governo federal seria uma integração de todos os municípios, facilitação da governança em dados e impostos. Os estados, por exemplo, poderiam pensar na segurança pública e em um monitoramento de suas cidades. E, falando das cidades, seria muito mais a questão da gestão do local. Então, cada esfera de governo vai interagir com o processo de maneira diferente.

Os interessas, então, são diferentes, e não só pelas esferas de governo, como também secretarias, autarquias e até mesmo entidades privadas. Mas, uma vez que estejam totalmente interligados, isso favorece o processo, para que seja muito mais eficiente e rápido, e o cidadão na ponta veja o benefício de forma proveitosa.

Tele.Síntese: Em termos legislativos e regulatórios, há algum problema que precisa ser encaminhado para incentivar uma política de cidades inteligentes no Brasil?

Reis: Costumo dizer que, hoje, a [ideia de] cidades inteligentes está muito bem abraçada pela legislação. Temos alguns critérios, como LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais] e tráfego de informações e de imagens. As imagens, por exemplo, não são proibidas, mas têm de ser tratadas de forma segura, como mascaramento para que as pessoas não sejam vistas por qualquer câmera e qualquer pessoa. Então, quando eu trato de regulamentação, não há praticamente nenhum impedimento. Isso está muito bem incorporado.

Tele.Síntese: Então, se temos legislação adequada e PIB [Produto Interno Bruto] significativo comparado aos nossos vizinhos, o que tem segurado o Brasil de avançar nessa pauta?

Reis: Temos algumas barreiras, a começar por uma metodologia de governo. Isso pede uma continuidade de políticas que foram implantadas que provavelmente não serão seguidas em outros governos. Então, seria a falta de planejamento a longo prazo. Em vez disso, há muito mais interesse numa exposição política do que focar no problema da população.

Quando falo de economia, há a questão da disponibilidade dos recursos financeiros. Sabemos que muitos desses recursos vêm do caixa público, o que faz com que se dependa 100% de recursos federal, estadual ou municipal. Isso faz com que o investimento demore um pouco mais para acontecer ou passe por vários processos de licitação até o município chegar a ver o retorno disso.

Também há escassez de conhecimento, pessoas capacidades para entender a tecnologia e como essa tecnologia vai fazer a cidade proceder com excelência.

Tele.Síntese: Estamos caminhando para completar um ano do início da ativação do 5G no Brasil. Essa tecnologia vai ser um aliado dos projetos de cidades inteligentes?

Reis: É uma tecnologia que promete trazer grandes mudanças tecnológicas, porém, ainda é para poucos porque é cara. O governo precisa facilitar essas ações e trazer o investimento para o curto prazo, como ter aparelhos compatíveis. É muito comum, por exemplo, aparelhos celulares que, conforme a configuração, não vão ter acesso [ao 5G]. Então, além de implantar a rede, é preciso pensar em quantos vão ter acesso a ela.

O 5G vai facilitar? Sim, é claro. Quem já teve a oportunidade de usar em países desenvolvidos viu que é coisa de outro mundo. Mas a população ainda não tem na mão aparelho e conectividade para receber todo esse benefício. Acho que vai demorar um tempinho ainda, haja vista o tempo que se demorou para desenvolver o 4G.

Dá para ver que tudo começa pelo governo. Não estou falando em Estado grande ou mínimo. O Estado tem de prover as necessidades básicas, o que inclui conectividade, sustentabilidade, tornar as cidades resilientes e fazer com que a população esteja capaz para interagir. Isso, sim, é demanda do governo.

Tele.Síntese: Você sente o atual governo federal interessado em promover as cidades inteligentes?

Reis: Vemos um grande movimento do governo, tanto em nível federal quanto estadual. O governo federal, hoje, tem uma secretaria com pessoas designadas para isso. Eu os vejo muito engajados nesse processo. A diretriz começa lá em cima. Então, uma vez que se tenha uma diretriz estabelecida, a necessidade de implementação começa a fluir nos estados e nos municípios. Existe um grande projeto para os próximos quatro anos para que as cidades se tornem cada vez mais conectadas com o governo, e o governo com as cidades.

Tele.Síntese: Como acha que nossas cidades estarão em termos de cidades inteligentes daqui a uns dez anos? Devemos ter grandes avanços?

Reis: Não só devemos, como teremos, porque a tecnologia se renova todo dia. E algo que precisamos ter sempre em mente é que cidade inteligente soa como algo muito futurista. Porém, a grande contrapartida é que, para ter uma cidade inteligente, é preciso ter uma população inteligente, humanizada e satisfeita. Vejo isso numa crescente porque, hoje em dia, a população se preocupa mais com o nível de satisfação e com o ambiente em que vive, quer estar cada vez mais conectada e bem assistida pelo estado. As empresas, na contrapartida, promovem inovações a todo momento. Tudo isso é benefício para a população lá na ponta.

Quando falo em conectividade, imagino que daqui a dez anos vamos ter, além de São José dos Campos e Pindamonhangaba, duas cidades interioranos num país de 5.700 cidades conectadas, também grandes cidades aparecendo nesse ranking. O objetivo hoje é muito mais no [ser] humano do que somente na tecnologia.

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