Sequência de derrotas do governo na Câmara ofusca vitória do arcabouço e escancara base inexistente

A Câmara dos Deputados aprovou na última terça-feira, 23, o relatório do deputado federal Cláudio Cajado (PP-BA) para do Projeto de Lei Complementar (PLP) 93/2023, que institui o novo arcabouço fiscal no Brasil. O placar foi de 372 votos favoráveis à matéria, 108 contrários e uma abstenção – uma votação expressiva, que garantiu a primeira vitória do Palácio do Planalto no Congresso Nacional. Entretanto, ainda que represente um triunfo para o governo Lula 3, o resultado está longe de traduzir a formação de uma base governista no Legislativo. Pelo contrário, a sequência de derrotas impostas ao Executivo na última semana ofuscou o triunfo na aprovação do marco fiscal e escancarou um problema já conhecido: o Planalto não tem base e segurança para aprovar matérias simples no Congresso. Mais do que isso, quase seis meses após o início do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Presidência da República, o mandatário deve enfrentar um desmonte em seus ministérios e a iminente aprovação do Marco Temporal das Terras Indígenas – duas derrotas inesperadas, mas que resultam da má articulação política junto ao Legislativo.

A principal derrota do governo na semana foi a aprovação do relatório do deputado federal Isnaldo Bulhões (MDB-AL) no âmbito da Medida Provisória 1154/2023, na última quarta-feira, 24, um dia após a vitória do marco fiscal. Entre outras coisas, o substitutivo apresentado pelo relator altera a estrutura dos ministérios criados para o governo Lula 3 e esvazia atribuições de ministros-chave, como Marina Silva, Sônia Guajajara e Paulo Teixeira. Seguindo o prazo constitucional, o governo têm até a próxima quinta-feira, 1º, para conseguir a aprovação de seis medidas provisórias (MPs), incluindo a MP dos Ministérios, sob risco de perder a validade. Se o texto caducar, o Planalto seria obrigado a se adequar à estrutura da gestão Bolsonaro. Com isso, existe o risco de a estrutura governamental colapsar, já que haveria a redução de 37 para 22 pastas, o que afetaria a dinâmica de diversos órgãos criados e remanejados. Ao mesmo tempo, caso o texto de Isnaldo Bulhões seja aprovado, o governo também terá que se adaptar ao modelo chancelado, o que inclui a retirada do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda; realocação da demarcação de terras indígenas dos Povos Originários para o Ministério da Justiça; e exclusão do Cadastro Ambiental Rural (CAR), da Agência Nacional de Águas (ANA), e da gestão de resíduos sólidos do Ministério do Meio Ambiente, entre outras coisas.

Mudanças internas à parte, entre os membros do primeiro escalão da gestão Lula, a avaliação é que as alterações também vão gerar prejuízos externos, inclusive para a imagem do governo Lula no mundo. “Não basta a credibilidade do presidente Lula, ou da ministra do Meio Ambiente. [O mundo vai] Ver que a estrutura do governo não é a que ganhou as eleições, é a estrutura do governo que perdeu. Isso vai fechar todas as nossas portas”, alega a ministra Marina Silva, uma das mais prejudicadas pelo desmonte promovido no Congresso Nacional. Com o resultado inesperado, a presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR), chegou a prometer na última quinta-feira, 25, que o governo iria recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), se for preciso, para reverter as mudanças. No entanto, um dia depois, em uma nova demonstração de curto-circuito nas hostes petistas, o ministros Alexandre Padilha e Rui Costa rechaçaram a possibilidade de judicialização do tema enquanto a discussão seguir no Congresso Nacional. Os articuladores de Lula também afirmaram que o governo vai trabalhar para reverter as mudanças ainda no Parlamento, antes da votação em plenário. Entretanto, na prática, o cenário é pouco auspicioso, já que, sem uma maioria governista, há poucas chances disso acontecer. Parlamentares ouvidos pela reportagem consideram que dificilmente as alterações serão revertidas. Em outras palavras: na próxima semana, o Congresso deve desmontar a medida inicial tomada por Lula e mandar o mais retumbante dos recados ao Planalto.

“Não reverte mais, aí é muito fisiologismo”, inicia o deputado federal José Nelto (PP-CE). Ele avalia que o governo está “batendo muita cabeça na área política”, o que dificultaria ainda mais as articulações, especialmente em temas sensíveis, que envolvem setores da sociedade ou que são de interesse restrito do Executivo – como os ministérios. Quanto à aprovação do marco fiscal, o deputado pondera que a maioria atingida representou uma base “pelo Brasil” e um gesto ao mercado, não a Lula. “Essa base do arcabouço atendeu ao Brasil. O Congresso votou com a regra fiscal. Agora, o governo vai ter que conversar projeto a projeto, porque não tem base e segue desarticulado. Parece que ele [Lula] desaprendeu a fazer política”, avalia o parlamentar. Outros congressistas ouvidos pelo site da Jovem Pan também ponderam que a aprovação do arcabouço fiscal não representa o apoio da base de Lula, pelo contrário. Na visão deles, os 372 votos favoráveis ao texto-base demonstram mais a força política do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), considerada a principal figura do Centrão. “Quem tem base é o Lira”, disse o deputado Marcel Van Hattem (Novo-SP). O próprio político alagoano fez declarações negando que a maioria conquistada demonstra que o texto de Cláudio Cajado “tinha maturidade” e “era equilibrado”, não sendo um indicativo de tempos de ouro ao Planalto. “Essa matéria [o arcabouço fiscal] não é uma matéria de governo, de oposição. É uma matéria de país. Mas essa, tanto quanto a tributária, vão ser tratadas absolutamente à margem de todo o problema ainda de articulação, formação de base que o governo tenha no Congresso”, resumiu Lira.

Além da aprovação do relatório da MP dos Ministérios, o Palácio do Planalto também sofreu uma segunda derrota, que pode se desdobrar em um problema ainda maior: o avanço de um projeto de lei que pode definir o marco temporal das terras indígenas. Nos moldes da derrubada dos decretos de Lula sobre o Marco do Saneamento, a aprovação da urgência do PL 490/07 também ocorreu a toque de caixa, surpreendendo mais uma vez o Executivo, que saiu derrotado. Se aprovado o projeto, a Câmara vai reconhecer que apenas as terras já ocupadas por povos indígenas em 5 de outubro de 1988 poderão ter a demarcação reivindicada. Isso contraria uma das principais bandeiras de campanha petista à Presidência e intensifica as cobranças por uma atuação mais convicta de Lula para barrar a aprovação. Ainda na Câmara, os deputados também aprovaram uma medida provisória que altera a Lei da Mata Atlântica e flexibiliza ferramentas de controle ao desmatamento no bioma. O dispositivo havia sido retirado do texto assinado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a tramitação no Senado Federal, mas incluído pelo relator, deputado Sérgio Souza (MDB-PR), ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). A cúpula do governo já avisou que Lula vetará essa alteração. Na Câmara, o veto deve ser derrubado, mas o Planalto conta com os aliados no Senado para chancelar a canetada do petista.

Com problemas reais na articulação e longe de ter maioria para avançar com sua agenda, o governo se vê dependente do apoio e da vontade política de um Congresso conservador, direitista e aliado do agronegócio. Nas palavras do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), a votação expressiva do arcabouço fiscal seguida pelo avanço do Marco Temporal e a aprovação preliminar da MP dos Ministérios, só reforça que, quase seis meses do início do novo governo, Lula ainda patina para a construção de uma base e tem mais problemas à vista do que triunfos. Para virar o jogo, caberá ao Executivo contar com a força de atores políticos externos conquistar votos. No caso, especialmente do Centrão e do presidente da Câmara, Arthur Lira. O ônus disso será depender da velha política do “toma lá, dá cá” e, se preciso, aceitar derrotas inesperadas para conseguir vitórias expressivas. “Arthur Lira comanda o Centro, mas um dia ele dá no cravo (oposição) no outra na ferradura (governo)”, concluiu.