‘Se eu sou a única, tem algo errado’: Sonia Guimarães, a primeira doutora negra em Física no Brasil

Antes do ITA. Antes de Manchester. Antes de saber o que era Física. Sonia Guimarães já era professora — no quintal da mãe. A escolinha improvisada tinha quadro imaginário e colegas de brincadeira como alunos. “Não podia ter mais ninguém. A casa era da minha mãe, mas quem mandava ali era eu”, conta, rindo.
A infância foi vivida entre asfalto e rolimã. Brincava de queimada, despencava da bicicleta, freava o carrinho com o próprio pé, segundo ela, “porque o freio nunca funcionava”. Um tempo em que dava para correr na rua sem ser atropelada, e cair fazia parte da rotina. “Vivíamos sem a tampa do dedão do pé”, resume.
A menina que dava aulas nas tardes de sol era também a que perguntava por que o céu é azul e a nuvem é branca. O tipo de curiosidade que incomoda quem não tem tempo para responder. Ela teve que aprender sozinha e, depois, ensinar com método.
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A equação da curiosidade
O gosto pelas ciências surgiu ainda na adolescência, quando cursava o ensino técnico. Mais tarde, veio a graduação em Física pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde enfrentou a rotina silenciosa de exclusão: poucas mulheres, menos ainda negras.
Seguiu para o doutorado na Universidade de Manchester, na Inglaterra — e ali, entre os corredores de um centro de excelência em física aplicada, tornou-se a primeira mulher negra doutora em Física no Brasil. O feito viria a ser reconhecido anos depois, quando ela já não podia mais ser ignorada.
Na volta ao Brasil, foi contratada como professora no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), onde também seria a primeira mulher negra a dar aulas. Desde 1993, ensina física experimental e orienta alunos em áreas altamente técnicas. Em todos os ambientes, teve que aprender a existir onde não esperavam por ela.
Matéria e presença
Sua especialidade acadêmica são os semicondutores, base dos chips, sensores e circuitos da era digital. Durante o doutorado, pesquisou as propriedades físicas desses materiais — como o silício — sob diferentes condições. No ITA, concentrou sua produção científica em dispositivos optoeletrônicos e sensores de radiação, com aplicação em setores como defesa e aeroespacial.
Entre as contribuições mais relevantes, estão estudos sobre detectores infravermelhos usados em cabeças de mísseis e tecnologias de monitoramento sensível a calor. Um tipo de ciência com apelo prático, militar e estratégico, mas que nunca deixou de ter, para ela, uma função social: “ciência não se faz só no laboratório, se faz para transformar.”
A física da ausência
Ao se tornar a primeira, Sonia percebeu que havia algo errado. “Se eu sou a única, então tem alguma coisa muito fora do lugar.” E começou a falar. Em eventos científicos, salas de aula e programas de mentoria, ela repete o que o sistema tenta esquecer: a ciência brasileira é branca demais, masculina demais — e isso tem custo.
Participa de comissões e projetos de incentivo à presença de meninas negras nas áreas de exatas. É conselheira em programas como Futuras Cientistas, Afrominas e Cientistas do Alto Sertão. Coordena ações de diversidade junto à Sociedade Brasileira de Física. E sempre volta à mesma tese: sem acesso, não há produção; sem inclusão, não há avanço.
“Se as crianças negras não chegam bem alimentadas na escola, como vão competir em pé de igualdade?”
Resistir é método
Sonia não suaviza. “Se eu ficar quieta, eu morro. Se eu falar, talvez me matem, mas pelo menos vão me ouvir antes.” Ela não se considera ativista por escolha, mas por necessidade. Falar virou sobrevivência. Ficar calada seria compactuar.
Por isso, tornou-se também uma presença pública, dando entrevistas, palestras, conselhos e alertas — sobre racismo estrutural na academia, exclusão nos editais, sub-representação nas bancas e apagamento de trajetórias negras na ciência.
A menina do quintal
A menina que dava aula no quintal não sumiu. Só ganhou jaleco, crachá e uma pauta mais ampla. Não quer se aposentar tão cedo. “Ainda tem muita coisa pra dizer.” Quer continuar ensinando, incomodando, abrindo caminho para que outras não tenham que ser “as primeiras”.
O tempo passou, os sensores evoluíram, os laboratórios se tornaram mais silenciosos. Mas Sonia Guimarães permanece como cientista, como educadora e como ponto de ruptura. Uma mulher que não apenas entrou onde não era esperada, mas que fez questão de deixar a porta aberta para quem viesse depois.
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