Veja como o amor e a música são capazes de ultrapassar barreiras

A cada respiração, os movimentos são diferentes, ao passar um segundo as lembranças do agora não existem mais. Às vezes, as batidas são as mesmas; outra hora, não pertencem a ninguém, não têm memórias e muito menos algum resquício de vida. É como se o corpo estivesse ali, vivo. Pulsando, funcionando, mas a alma, não.

Ela está perdida no espaço? No passado? No futuro? Quem sabe? A lucidez e as histórias, essas não voltam mais. Não voltam, mas se transformam em uma aquarela, na qual as cores são leves, misturam-se facilmente. Às vezes, são transparentes como água, mas, em dado momento, podem ser uma linda obra de arte.

Não existia mais

Quando meu avô, Oswaldo, tinha 73 anos, foi diagnosticado com Alzheimer. Por muito tempo, fiquei triste por assistir aos últimos anos de vida da pessoa mais inteligente que pude conhecer se resumirem a quase nenhuma lembrança ou noção.

Advogado, preso na ditadura militar, nordestino e fã de Caetano Veloso e Gilberto Gil, não dava mais de três passos na rua sem conversar com alguém. Um cara querido e gentil. Em diversos momentos, desejei sua sanidade para que eu pudesse, pelo menos por um dia, absorver um pouco mais de conhecimento vindo desse homem que eu admirava tanto, mas ele não existia mais.

Eu vou, por que não?

Numa manhã, tomada por uma remota preguiça, cogitei ir à academia com um short de pijama coberto de corações. Resolvi, então, pedir a opinião dele a respeito do traje. Olhou no fundo dos meus olhos e, como de costume, sorriu. Ficou em silêncio por alguns segundos e, em seguida, me questionou se eu tinha percebido os corações nos shorts. Eu respondi que sim. Ele me perguntou se os corações representavam para mim o amor. Respondi, novamente, que sim. Ele sorriu e terminou sua resposta: “Para mim também, então acho que não tem problema você ir assim, né?”.

Aquele não foi o dia em que eu fui de pijama para a academia. Mas, sim, o momento em que eu compreendi o motivo pelo qual ele se encontrava naquela situação. Talvez, se naquele momento em que desejei sua sanidade mental isso tivesse se tornado real, nossa conversa teria sido repleta de discursos políticos, que, sim, seriam incríveis, mas eu não teria aprendido como um pijama de coração pode ser lindo, pelo simples fato de que pode representar o amor.

Caminhando contra o vento?

A primeira vez em muito tempo que o vi reagir foi quando cantei: “Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num sol de quase dezembro, eu vou”. Sim, Caetano. Meu avô, àquela altura, só se lembrava de fechar as janelas, trancar portas e abrir freneticamente a geladeira, ou então perguntar o dia e o horário.

“Alegria, Alegria” foi a única possibilidade de pincelada de amor, lucidez ou qualquer que seja a referência para o lapso de memória que ele teve. A partir dali, tivemos todos os dias a mesma sequência de ações, perguntas, confusões, mas, nos vãos desses momentos, ele cantava Caetano.

Às vezes, não lembrava quem cantava a música ou a letra por completo, mas não existiu um só dia em que ele não olhasse para mim e perguntasse: “Caminhando contra o vento?”. Eu continuava a canção, ele sorria e terminava: “Eu vou, por que não?”. Até mesmo em uma de suas internações mais graves – em que meu avô não reagia a nada –, bastou que a música tocasse para que ele proclamasse a famosa frase.

Os cuidados diários ajudam a fortalecer os vínculos e o amor Imagem: AlessandroBiascioli | Shutterstock

Simplesmente, amor

Muito tempo se passou e eu convivi com ele e sua doença até o dia de sua real partida. Minha dedicação e cuidados diários me fizeram ter vontade de mostrar ao mundo o que aprendi simplesmente amando meu avô.

No meu trabalho de conclusão do curso de Jornalismo, escrevi um livro contando nossas histórias e mais algumas outras sobre o Alzheimer. Quando fui aprovada com excelência, meu avô estava ao meu lado, mesmo sem entender quase nada. “Eu escrevi um livro sobre você”, eu lhe disse, ele me respondeu que não merecia.

Algum tempo depois que entreguei o livro, em 7 de março de 2022, meu avô, Oswaldo Catan, morreu. Aos 86 anos. No dia de sua morte, enquanto eu dava banho nele, achei-o mais abatido que o normal e carinhoso também.

Horas antes de sua partida, pedi-lhe um abraço, e ele, assim, finalmente se despediu de mim e daqui. Certos assuntos são difíceis de concluir. É estranho temer a única certeza que temos em vida e, quem sabe, evitar esse pensamento seja morrer antes mesmo de partir.

É preciso se despedir

A verdade é que a perda do homem mais importante da minha vida me fez enxergar que, por mais evoluídos que sejamos, não aprendemos a lidar com as perdas nem somos ensinados a nos despedir. Acho que, no fundo, temos a certeza de que podemos deixar tudo isso para depois.

Daqui a pouco faz dois anos que meu avô morreu, e vivenciar essa doença por cerca de 13 anos me fez enxergar a importância de viver o agora e aproveitar todos os dias como o primeiro. Eu precisei aprender a me apresentar e reapresentar diversas vezes no mesmo dia, repetir as mesmas histórias com entonações diferentes e tornar coisas simples, como dar banho, em um conto de aventura, não raro, fantástico.

Aprendi a notar a pureza que ele apresentava em seu retardo mental, e a vida começou a ser mais leve para mim. A medicina, entretanto, o julgava incapaz – porque, sim, ele fazia xixi na calça e não sabia diferenciar mais manteiga de sabão. Mesmo assim, eu o admirava. Com todo meu amor. Entre nós, nunca houve abismo algum.

Por Gabriela Catan Velloso Itacarambyrevista Vida Simples

Jornalista, pisciana e apaixonada por contar histórias.