Vocês fingem, eu finjo, todos nós fingimos: ‘É pela democracia’

No auge de meus 15 anos, eu não era lá um adolescente muito vistoso. Ainda que, quero acreditar, não estivesse na saleta dos feios, é fato que eu não seria justo com a verdade se me identificasse como “bonito”. Todavia, por algum fetiche, ou como Freud afirmava, por resquícios do estereótipo edipiano, a garota mais bonita da escola resolveu que queria ficar comigo. Ela teve a atitude e me abordou numa saída escolar; a condição era que fôssemos para algum lugar isolado, ainda que perto da escola, para podermos nos beijar. Assim fizemos, apesar do meu medo constante de ser alguma emboscada ‒ posso dizer que sempre fui aquilo que os mais velhos denominavam de “desconfiado”. Após a osculação, ela disse que queria continuar “ficando sério” comigo, o que, na linguagem adolescente do início dos anos 2000, significava “continuar nos beijando periodicamente”. Naquele momento, em um ou dois segundos, imaginei muitas coisas, desde um namoro com a garota mais linda da escola até eu me gabando para meus amigos. Todavia, a menina tinha outros planos. A condição para continuarmos nosso romance, assegurou ela, era que não falássemos de nosso relacionamento a absolutamente ninguém; ela arrematou dizendo ainda que, caso nos encontrássemos na escola, evitássemos nos cumprimentar ou trocar olhares, para que ninguém desconfiasse.

Estabelecemos ali, naquele momento, um acordo mútuo. Não era preciso explicar o porquê daquela atitude; não era necessário nem bom que a estranha preferência amorosa dela por gordinhos nerds fosse descoberta pelo resto da humanidade, e, mesmo sem ter assinado nada, nem ter lido as entrelinhas do documento, eu havia entendido e aceito. Para mantermos nossos beijos regulares, era indispensável que fingíssemos que não estávamos juntos. Foi a partir dali, diga-se de passagem, que comecei a admirar a poesia e psicologia por detrás da música sertaneja.

Com o passar dos anos, entendi que esse tal contrato de fingimento é algo muito comum na humanidade. Trata-se de um acordo sociológico ‒ gestado numa hipocrisia decentemente ignorada ‒ que ninguém, necessariamente, precisa explicar ou sequer expor, muito menos assinar. Ele simplesmente é percebido, entendido e aceito pelo conjunto social. Obviamente que meu contrato amoroso de adolescente foi apenas um exemplo muito inocente e banal, há aqueles ‒ da mesma espécie ‒ que são realmente danosos para a sociedade. Um desses contratos, em pleno funcionamento, é o que cuidadosamente chamo de “autoritários pela democracia”. Aliás, se esse fosse o nome de algum plano do atual governo, além de genial, seria completamente autoexplicativo.

Como bom católico que tento ser ‒ e atualmente casado com uma mulher muito mais linda que aquela do começo deste artigo ‒, pessoalmente me esforço para acreditar que todos os estudiosos e homens de compreensão, ao verem os últimos acontecimentos de nossa República, são conscientemente dissimulados. Sabem, de fato, que o que estamos vendo acontecer quase diariamente passa muito longe de uma “democracia”. Que não é minimamente razoável acreditar que seja possível, ao mesmo tempo, defender a democracia e destruir seus pilares mais fundamentais. Desta maneira, vemos Monark ser censurado de forma clara e, sem retóricas, sendo impedido de existir nas redes sociais ‒ o que, guardadas as devidas proporções, equivale a uma espécie de isolamento carcerário do século passado. Mas, para todos os efeitos, FINGIMOS que isso é parte de um processo normal de defesa da sociedade democrática. E, para isso, usamos aquela frase que atualmente tudo justifica: “É pela democracia”. Em 2022, vimos uma empresa privada de conteúdos audiovisuais, a Brasil Paralelo, ser toscamente impedida de lançar seu documentário num ato óbvio de censura prévia ‒ a ministra Cármen Lúcia do STF concorda comigo, então, me deixa, STF ‒, entretanto, como era “pela democracia”, a censura torna-se boa, top… justificável… NECESSÁRIA!

Esta semana soubemos pela imprensa internacional, sob fontes brasileiras e americanas, que o governo dos Estados Unidos, através de seu departamento de Estado e da CIA, interferiram na lisura das eleições brasileiras. Como? Fazendo com que parte da grande mídia vinculasse notícias e matérias contrárias ao candidato do PL, Jair Bolsonaro, procurando, assim, influenciar na vitória de Lula. E, como podemos imaginar, só Deus sabe até onde essas influências vão em setores mais altos de nossa República. Mas, calma lá, que é “pela democracia”, então esse imperialismo norte-americano está OK. 

E assim continuamos fiéis ao acordo “autoritários pela democracia”, a Polícia Federal finge que as ordens ilegais das cortes são constitucionais, fingimos que o STF não viola a Carta Magna, que o TSE não é politizado e partidário, que a liberdade de expressão está intocada no país, enfim, que somos um país que sobreviveu a um golpe de Estado em 8 de janeiro e, graças a poucos homens com coragem para serem déspotas esclarecidos, o país ainda é uma democracia. É isso que, mesmo sabendo ser pura narrativa, ensinaremos nas escolas, repetiremos a esmo nos jornais na busca hipnótica de que um dia tudo isso se torne realidade.  Ah… os acordos…, Orwell já havia entendido isso e eternizado em seu romance A Revolução dos Bichos. No fim, aponta Orwell, os porcos e os humanos sempre se sentam à mesa para tomarem seus whiskeys e acordarem o que as massas deverão acreditar e repetir no dia seguinte; e o mais engraçado de tudo isso, acreditem, eles diziam na distopia que todos os atos autoritários descritos alí eram pelo bem da fazenda Solaris.