Direito do Trabalho – Introdução – Parte II

Vimos em “Direito do Trabalho – Introdução – Parte I”, o trabalho e o trabalhador historicamente contextualizados. Com o “nascimento” do trabalho, surge a necessidade de regramento das relações que o orientam, dando-lhe, para além de sua prestação individual, um sentido social que lhe empreste um significado último.

 

Sucedendo a Encíclica Católica Rerum Novarum, de 1891, seguem–se as Constituições do México e da Alemanha, respectivamente, em 1917 e 1919, bem como, também em 1919, a criação da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

 

Entre muitos e diversos fatos históricos relevantes que foram de alguma importância para a construção da realidade existente no “mundo do trabalho em suas múltiplas relações”, não podemos deixar de mencionar a publicação, em 26 de agosto de 1789, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, referência e base para a Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 1948. Veja o que dispõe a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu art. 6º:

 

“A lei é a expressão da vontade geral. (…) Todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a capacidade deles, e sem outra distinção do que a de suas virtudes e talentos.”A íntegra deste documento está disponível em: http://www.hystoria.hpg.ig.com.br/declar.html

 

Caro leitor, fique bastante claro que tão somente tangenciamos a questão da história do surgimento do trabalho e do trabalhador, com o preciso intuito de criar uma plataforma mínima para assentar as definições e conceitos introdutórios relativos ao Direito do Trabalho que serão brevemente apresentados, assim como oferecer parâmetros balizadores que possibilitarão o desenvolvimento do tema em maior profundidade e, em última análise, viabilizar a apresentação deste mesmo tema restringindo-o ao Brasil, já que foco central de nossa atenção.

 

Valho-me, para finalizar a composição deste quadro de idéias, das significativas reflexões contidas em valioso trabalho da Profª Marilena Chauí, cujo excerto ora transcrevo:

 

“ Quando a democracia foi inventada pelos atenienses, criou-se a tradição democrática como instituição de três direitos fundamentais que definiam o cidadão: igualdade, liberdade e participação no poder. Igualdade significava: perante as leis e os costumes da polis, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira. Por esse motivo, Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era igualar os desiguais, seja pela redistribuição da riqueza social, seja pela garantia de participação no governo. Também pelo mesmo motivo, Marx afirmava que a igualdade só se tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos, servos, e assalariados explorados, mas fosse dado a cada um segundo as suas necessidades e segundo o seu trabalho.(os grifos são meus)

 

A observação de Aristóteles e, depois de Marx indicam algo de preciso: a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais, mas abre o campo para a criação da igualdade, através das exigências e demandas dos sujeitos sociais. Em outras palavras, declarado o direito à igualdade, a sociedade, a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criá-lo como direito real. Liberdade significava: todo o cidadão tem o direito de expor em público os seus interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Na modernidade, com a Revolução Inglesa de 1644 [1640] e a Revolução Francesa de 1789, o direito à liberdade ampliou-se. Além da liberdade de pensamento e de expressão, passou a significar o direito à independência para escolher o ofício, o local da moradia, o tipo de educação, o cônjuge, em suma, a recusa das hierarquias fixas, supostamente divinas ou naturais. (os grifos são meus)

 

Acrescentou-se em 1789, um direito de enorme importância, qual seja, o de que todo indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a libertação ou punição devem ser dadas segundo a lei. Com os movimentos socialistas, a luta social por liberdade ampliou ainda mais esse direito, acrescentando-lhe o direito de lutar contra todas formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social, econômica, cultural e política.

 

Observamos aqui o mesmo que na igualdade: a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela práxis [prática] humana.

 

Participação no poder significava: todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas da polis, votando ou revogando decisões. Esse direito possuía um significado muito preciso. Nele afirmava-se que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre administração e guerra), mas a ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria polis….”. Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000, p. 432-3 in Koshiba, Luiz, Pereira, Denise M. Frayze. História Geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2004, p. 237-8.

 

O texto ora reproduzido traduz e justifica, especialmente na parte que grifamos, a utilização da expressão “o aparecimento do trabalhador e da pobreza em sua versão capitalista” em Direito do Trabalho – Introdução – Parte I, posto que surgem com o fim do assistencialismo protetivo característico das relações feudais. Dilucido: as relações feudo-vassálicas eram exclusivamente pessoais, a estrutura entre as 03 (três) camadas sociais que definiam sua estrutura, quais sejam, o clero, a nobreza e os camponeses, a despeito das desigualdades que guardavam entre si, mormente entre o trabalhador e as outras duas classes, estabeleciam-se de forma direta entre a fonte de onde emanava a autoridade e o poder e a quem estes eram dirigidos. Havia um fluxo estável nas relações (ainda que em bases extremamente desiguais e injustas) entre àqueles que oravam e indicavam “o caminho da salvação” (aos nobres e aos camponeses); àqueles que eram detentores dos segredos da arte do combate e ofereciam proteção militar (aos clérigos e aos camponeses) e, finalmente, àqueles que produziam o alimento, em primeiro lugar, e outros artigos, como por exemplo peças de vestuário, ferramentas e armas, em segundo plano, para toda a comunidade. Em síntese: havia o grupo dos que oravam; o grupo dos que lutavam e o grupo dos que trabalhavam para sustentar “os outros dois grupos”, de maneira que pudessem continuar a dedicar-se exclusivamente a tão nobres ofícios…

 

Os trabalhadores, a despeito da miséria em que (sobre)viviam, situação legitimada por premissas e dogmas da Igreja, mantinham-se sob a proteção e guarida do senhor feudal e o sob os auspícios redentores da clero, restando caracterizada uma relação de interdependência entre essas 03 classes, que a despeito das patentes desigualdades que guardavam entre si, salientando a maiúscula desvantagem que se impunha sobre a dos servos, eram efetivamente essenciais umas às outras. Registre-se, já que o espaço recomenda uma abordagem tão somente superficial, que o Período denominado Idade Média teve uma duração de aproximadamente 1.000 (mil) anos (para fins didáticos, de 476 a.C. a 1.453 d.C.) e que o “colapso do sistema”, o declínio da Idade Média, no período denominado “Baixa Idade Média”, se deu basicamente em função de processos exógenos, o que demonstra que o modelo era, em linhas gerais, estável: contudo, como emerge claro do texto acima transcrito, em nenhuma medida há sinonímia entre estabilidade e igualdade sociais.

 

Na Idade Média, como demonstrado, havia uma aceitação das hierarquias fixas, supostamente divinas ou naturais: o fim desta hierarquia, desta dependência e vínculo direto do servo em relação ao Senhor Feudal, do qual, até então, não havia meios de se desvincular, resultou em uma liberdade circunstancialmente perniciosa, já que o trabalhador viu transformada sua “independência” em escolher seu ofício, sua moradia, entre outras “liberdades”, em momentânea desassistência e desamparo. Estas considerações, quero crer, bastariam para justificar a reprodução do fragmento de texto da Profª Marilena Chauí, remetendo-nos a questões hodiernas relevantes, tais como as reformas sindical e trabalhista, aconselhando-nos à realização de avaliações prudentes e cautelosas e a desviar-nos de conclusões apressadas com base em aparências.

 

Entendo ser de vital importância para todos aqueles que manejam o Direito do Trabalho desenvolver o conhecimento jurídico de maneira socialmente contextualizada, percebendo primeiro a sociedade e depois as normas que a disciplinam. Sugerimos ao leitor que tiver interesse em maior aprofundamento no tema, sob uma perspectiva histórica; econômica e sociológica, que pesquise, além dos tópicos abordados neste tutorial e em “Direito do Trabalho – Introdução – Parte I”, o seguinte: Iluminismo; Renascimento; Montesquieu; Jean-Jacques Rosseau; Immanuel Kant; François Quesnay; Adam Smith; David Ricardo; Thomas Malthus; Escola Fisiocrata; Voltaire; Diderot; John Locke; John Stuart Mill; Revolução Industrial; Oliver Cromwell; Cartismo; Absolutismo; Miguel Hidalgo; Independência dos EUA; Guerra da Secessão; teoria da mais-valia; materialismo dialético; comunismo; ditadura do proletariado; socialismo; Comuna de Paris; divisão social do trabalho; política salarial e políticas de empregos; liberalismo; discriminação e trabalho;movimento operário; sindicalismo e etc. Obs.: Alguns destes tópicos serão oportunamente desenvolvidos por integrarem o programa para o concurso de Fiscal do Trabalho (Sociologia do Trabalho e Economia do Trabalho).

 

Vamos agora a uma rápida abordagem do aparecimento do trabalho, do trabalhador.

Como cediço, o Brasil foi movido pelo trabalho escravo até o final do século XIX, oficialmente 13/05/1888, data em que através da Lei 3.353 (conhecida como Lei Áurea) foi abolida a escravatura. Contudo, já a partir de 1850, com o advento da Lei Eusébio de Queirós proibindo o tráfico de escravos, começaram a ser estabelecidas, principalmente nos latifúndios de café do oeste paulista, as primeiras relações de trabalho assalariadas. Vale lembrar que o expansionismo cafeeiro em direção ao oeste paulista resultou na expansão da malha ferroviária, atendendo a necessidade de escoamento da crescente produção de café, da área produtora (num primeiro momento em Campinas e depois em Ribeirão Preto) à área de escoamento, o Porto de Santos, o que aliado ao desenvolvimento do sistema bancário e ao surto industrial, imprimiu uma nova dinâmica nas relações econômicas e produtivas, podendo ser definido como o momento de surgimento das relações de trabalho no Brasil.

 

Para se ter uma melhor e mais detalhada dimensão dos fatos, veja o seguinte: a) em 1844, com a elevação dos direitos alfandegários de 15% para 30% (Tarifa Alves Branco), o Estado melhora significativamente sua arrecadação, permitindo um incremento nos investimentos públicos; b) a interiorização das fazendas de café rumo ao oeste (Campinas e Ribeirão Preto) demandavam uma rede de transporte para escoamento da produção, sendo que os próprios cafeicultores foram os maiores responsáveis pela expansão da rede de transportes (malha ferroviária), redesenhando o perfil conservador da aristocracia cafeeira, agora com um porte empresarial e empreendedor; c) a soma dos dois fatores anteriores, o incremento na produção de café e ascensão de seu mercado, aliado ao excedente de capital decorrente do fim do tráfico negreiro, foram os grandes responsáveis por uma onda de empreendimentos que tem como símbolo maior o barão de Mauá, que atuou em diversas e distintas áreas da economia, entre as quais podemos destacar: construção de navios a vapor, estradas de ferro, bancos e empresas de transporte.

 

Outro fato que não podemos deixar de mencionar é o surgimento da Lei das Terras, em 1850, que estipulava que as terras devolutas só poderiam ser adquiridas por compra (terras que até então eram apropriadas por particulares mediante a concessão de sesmarias). Fácil perceber que a indigitada lei surge no mesmo ano em que foi editada a norma que aboliu o tráfico de escravos, demonstrando claramente ter sido produto da preocupação da elite cafeeira que pretendia, ao restringir o acesso a terra, assegurar que não ficariam sem mão-de-obra, haja vista que com o fim do tráfico, prenunciava-se o fim da escravidão e o início da escassez de força de trabalho.

 

Não será impróprio traçar um paralelo entre os “cercamentos” ocorridos na Inglaterra – Direito do Trabalho – Introdução – Parte I – e a Lei das Terras, na medida em que, como meio de dominação e exploração, igualmente afastaram o trabalhador de seu meio de produção: a terra.

 

O problema da escassez de mão-de-obra decorrente do aumento da atividade econômica e, particular e especialmente, do fim da escravidão foi enfrentado com a utilização do trabalho assalariado dos brasileiros e dos imigrantes, estes últimos, particularmente na província de São Paulo, que houve por bem subvencionar o processo de imigração.

 

Podemos dizer que o processo de formação do mercado de trabalho no Brasil começa a adquirir suas primeiras formas com a edição da Lei do Ventre Livre, em 1871, consolidando-se com o passar o tempo, destacadamente a partir de 1888, na medida em que os imigrantes que vieram substituir o trabalhador escravo, ingressam no Brasil.

 

No último tutorial desta parte introdutória (Direito do Trabalho – Introdução – Parte III) faremos os apontamentos conclusivos do que até então abordado, bem como uma análise do período compreendido entre 1888 e 1943, especialmente no Brasil, respectivamente data da edição da Lei Áurea e do Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, que aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT.

 

*** AGUARDE: DIREITO DO TRABALHO – INTRODUÇÃO – PARTE III ***

 

 

VOCÊ SABIA ?

 

” Que o africano era conhecido no Brasil como peça, ele era negociado como uma mercadoria: raspavam seu cabelo, lustravam seus dentes, passavam óleo em seu corpo para ficarem mais brilhantes e com aparência saudável, além da engorda, o que garantia um bom preço. Esse preço sofria uma variação de acordo com o sexo e, principalmente com a condição física. Os homens adultos eram os mais valorizados. Um escravo trabalhava cerca de 16 horas por dia (das 6 da manhã às 10 da noite). Assim, com 35 anos já tinham cabelos brancos, boca desdentada e não agüentavam mais o trabalho pesado. Apesar de todo esse trabalho árduo, os escravos tinham uma alimentação muito fraca, recebiam apenas um ralo caldo de feijão e a ele eram misturadas partes de porco que foram desprezadas pelos senhores. Foi assim que surgiu a feijoadaOs escravos eram marcados em brasa quente, como animais. Eles tinham as iniciais de seus senhores gravadas nas coxas, faces, braços ou no peito.

 

Cada senhor de engenho tinha direito de importar até 120 escravos por ano, e cada escravo podia levar 50 chibatadas por dia.”

http://www.coisasdafazenda.com.br/cultura/escravos.htm

 

A informação acima atesta o brocardo: nem tudo que é justo é legal e nem tudo o que é legal é justo.

 

CURIOSIDADE: De onde vem o nome “Lei Áurea” ? “ Dessas penas molhadas no tinteiro, há uma inesquecível: a de ouro empunhada pela Princesa Isabel ao promulgar a lei de Abolição da Escravatura no Brasil, no dia 13 de Maio de l888. Este ato memorável, por ter sido assinado com uma pena de ouro, ganhou a denominação de Lei Áurea.”

Fonte: http://www.juliobattisti.com.br/artigos/direito/dirtrabintroducao002.asp

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