Autocracia venezuelana mentém discurso de ‘eleições livres’ e ‘democracia plena’

Em viagem oficial a Bruxelas, onde participou da cúpula que buscou acelerar a parceria entre o Mercosul e a União Europeia, Lula aproveitou a visita e reuniu os presidentes da Argentina, Colômbia, França e a enviada do governo venezuelano para discutir a possibilidade dos convidados aliviarem sanções contra o regime de Nicolás Maduro. Em comum, os presentes são líderes inclinados à esquerda. Pode ser uma vantagem para Caracas todos os presentes estarem no mesmo espectro político. Mas qual a chance da reunião desta terça-feira, na capital da Bélgica, evoluir para um consenso? Depende – exclusivamente – do regime chavista. E aí está o impasse.

Há mais de vinte anos, o chavismo – que decolou com medidas sociais que diminuíram a pobreza pela metade na primeira década de governo – aproveitou a popularidade e se armou em uma autocracia que concretou Chávez no poder. O presidente só deixou o Palácio Miraflores ao morrer de câncer, em 2013. Desde então, o herdeiro político Nicolás Maduro mantém a cartilha do padrinho. Os dois acumularam força suficiente para mudar a Constituição, eliminando o limite de reeleições, e estenderam uma influência inédita no Legislativo e no Judiciário. O declarado apoio das Forças Armadas foi uma consequência natural. O círculo de proteção se fechou com o estrangulamento da oposição, o silenciamento da imprensa de posição crítica e a violenta repressão às manifestações públicas contrárias ao Executivo.

Embora tais fatos sejam notórios – e de fácil verificação – a defesa de Maduro já era usada pelo antecessor Hugo Chávez: “Tem eleição na Venezuela praticamente todo ano”. Verdade. Prefeitos, governadores, integrantes da Assembleia Nacional – que faz as vezes do nosso Congresso – e, claro, o presidente da República são escolhidos por voto direto. Não raro o Conselho Nacional Eleitoral, que funciona como o nosso TSE, anuncia plebiscitos quando propostas de emenda constitucional impactam demais a população. Mas existe uma distância abissal entre a teoria e a prática, quando o assunto é democracia plena na Venezuela.

Maduro, por exemplo, continua a rotina de passar horas falando na TV estatal, em um programa semanal dedicado às conquistas do governo. Todo custo é bancado pelos cofres públicos. A tática havia sido inaugurada por Chávez, décadas atrás. Antes mesmo de ser acusado de usar a máquina do Estado, o regime disse se tratar de “prestação de contas”. Os rivais políticos – que raramente consegue se unir contra o establishment – são tirados do jogo com prisões arbitrárias, sob acusações – inclusive – de rebelião e sabotagem quando encabeçaram marchar anti-governo. Parte da oposição tenta se articular no exílio, e pouco consegue resultados concretos. Até aqui, tais argumentos têm um forte componente de juízo de valor e interpretação jurídica. Ou seja, cada lado tem alegações de acusação e defesa. Mas contra fatos, não há argumentos.

Em 2004, no auge do período Chávez, o então presidente conseguiu a lista de eleitores que rubricaram o abaixo-assinado que levou ao revocatório – mecanismo previsto na lei venezuelana que, por meio de um referendo, pode antecipar as eleições presidenciais. Em 2003, Chávez escapou de ter o mandato encurtado, mas quis saber quem pensava o contrário. O caso ficou conhecido como “Lista Táscon”, por causa do nome do deputado incumbido a formular a planilha pedida pelo presidente. Silenciosamente, o documento serviu de base para perseguir cidadãos comuns que haviam escolhido o fim daquela administração. Houve expulsões no Exército sem nenhum processo na Justiça Militar, exonerações de servidores sem justificativas plausíveis, demissões em estatais, recusas de créditos em bancos públicos e exclusão de programas sociais. Em comum entre os preteridos estava o nome na tal lista.

O então presidente Chávez, que tinha enorme influência nos outros dois Poderes da República, popularidade inédita – dentro e fora da Venezuela – e conseguia calar a imprensa não-governamental, varreu para debaixo do tapete esta que é uma das maiores agressões à História da Democracia no mundo ocidental. Ninguém foi sequer julgado. A condenação ficou apenas àqueles que exerceram o direito de voto.

Retomando o início do artigo. Brasil, Argentina, Colômbia e França propõem aliviar sanções caso a Venezuela respeite o jogo democrático. O chavismo, desde o ano 2000, mantém o discurso de que não há cerceamento de nenhuma liberdade individual, mesmo tendo no currículo a não renovação da concessão de uma TV crítica ao o governo, e ter expulsado observadores internacionais que denunciaram os crimes do regime. A dupla Chávez-Maduro nunca admitiu ter construído um arcabouço autoritário, para se manter no poder por tempo indeterminado. A proposta dos países parceiros, dispostos a uma reaproximação, tem um desafio ainda mais profundo: fazer o presidente admitir duas décadas de perseguição a quem pensa diferente.