Lula dá ‘tiro no pé’ ao tratar presidente da Venezuela como democrata da América Latina

Lula segue no curso de retomada da agenda diplomática, escanteada pelo antecessor. O atual presidente brasileiro ganhou o título do “mandatário que mais viajou nos primeiros meses de mandato desde a redemocratização”. Fato. Gastou-se uma fábula. Verdade, também. O que se pode questionar é se o luxo das hospedagens não poderiam ter sido comedidos, em nome do corte de gastos. Consenso. Porém, não se pode ignorar os destinos. As comitivas brasileiras, na maioria lideradas pelo próprio presidente Lula, foram aos Estados Unidos, nosso maior parceiro comercial nas Américas; à China, nosso maior parceiro comercial na história do país; à Argentina, nosso maior parceiro regional e parte fundamental do Mercosul — no qual parte da indústria automobilística brasileira está alicerçada. Lula foi ainda à Inglaterra, como convidado para a coroação do Rei Charles III. De quebra, foi chamado para uma reunião, encaixada de última hora, com o primeiro-ministro Rishi Sunak. Neste mês, esteve no Japão para integrar — em caráter extraordinário — a cúpula do G7, grupo de potências democráticas no qual o Brasil não faz parte e, infelizmente, ainda terá de evoluir muito para se juntar. Críticas à parte quanto ao volume de embarques e desembarques do presidente, convenhamos que todas estas viagens foram absolutamente pertinentes política, econômica e diplomaticamente falando. Sendo justo com os fatos, Lula atropelou o discurso com crenças particulares. Compartilhou a responsabilidade da guerra com a Ucrânia, gerando um mal-estar internacional que sobrou para o diplomata de longa carreira Celso Amorim resolver.

Ainda na trilha do esforço do governo para recolocar o Brasil no trilho da relevância das relações internacionais, o Palácio do Planalto inverteu o roteiro: chamou para Brasília presidentes latino-americanos, para um encontro de integração. De novo, Lula deixou com que convicções pessoais encobrissem aos acontecimentos. Ao receber Nicolás Maduro, o herdeiro do chavismo que comanda a Venezuela desde 1999, o discurso foi de críticas a quem, segundo o presidente, “pinta o líder venezuelano como um homem mau”. A postura de Lula ficou ainda mais questionável quando os dois apareceram lado a lado, para um pronunciamento em conjunto. Um dos momentos-chave foi a frase: “Companheiro Maduro, você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela”. Lula reiterou ter feito um trabalho hercúleo, segundo ele, mundo afora, explicando “que a Venezuela não era aquilo que falavam”.

Tomo a liberdade de me afastar dos discursos e abrir espaço para um relato pessoal. Conto ao presidente — e a quem mais quiser saber — as minhas impressões sobre a Venezuela. Estive dez vezes no país. Todas como jornalista. E sempre sob o governo de Chávez ou Maduro. Vi de perto políticas sociais que aliviaram a miséria e diminuíram 50% da pobreza em uma década, a partir dos anos 2000. Visitei projetos sociais que deram acesso ao atendimento médico, alimentação de qualidade e moradia digna. Tão de perto quanto, vi o preço cobrado pela ganância de poder. Uma reforma agrária mal-sucedida e decisões arbitrárias que afugentaram a indústria, reflexos de uma tática autoritária. O colapso econômico veio como uma das consequências pelo erro de estratégia ao centralizar o PIB venezuelano ao petróleo, a maior riqueza do país. Afinal, o faturamento do Estado estava atrelado aos ciclos de alta e baixa da cotação internacional, às vezes imprevisível.

O bolivarianismo criado pelo então presidente Hugo Chávez usou os momentos de economia pujante como um instrumento político. Mas como em todos os cenários, o chavismo não é unânime. E tratando-se de uma democracia, sempre existe a oposição. Para burlar tanto a insatisfação de parte dos eleitores quanto os partidos rivais, a dupla Chávez-Maduro usou recursos condenáveis do ponto de vista das liberdades. Candidatos que ganhavam força a ponto de ameaçar a soberania bolivariana foram sumariamente perseguidos. Prisões arbitrárias e restrição à ampla defesa em caso de acusação se tornaram rotina. As reclamações populares, em forma de protestos nas ruas, terminam violentamente reprimidos, em via de regra. Hoje, raramente acontecem manifestações públicas de massa por causa da eficiente opressão.

Classificar Maduro de “ditador” é simplificar a circunstância. O chavismo foi muito mais eficaz. O regime criou uma autocracia moderna ou “autocracia eleitoral”, como alguns teóricos preferem denominar. Vejamos: a Venezuela ainda realiza eleições pluripartidárias, incluindo o sem-número de plebiscitos já registrados nestes 20 anos. Por outro lado, o governo criou tantos tentáculos que a oposição não tem força para submergir. Isto, sem contar as dúvidas quanto à lisura das votações, as quais órgãos internacionais de monitoramento têm pouco acesso — ou quase nenhum. Por fim, a liberdade individual vigiada por um aparato de monitoramento constantemente ameaçador e a imprensa cerceada, com direito à expulsão de correspondentes estrangeiros. Diante destes argumentos, ressalto: o chavismo cumpriu a cartilha do autoritarismo e cresceu silenciosamente; nas sombras. Quando a tática ficou evidente, era tarde demais. O projeto de poder resultou em um Estado ineficiente, cujos objetivos do bem-estar social foram suplantados pelo programa de perpetuação no Executivo, controle do Legislativo e influência no Judiciário.

Se por um lado, o chavismo diminuiu sensivelmente a fome na Venezuela dos anos 2000, a mesma política provocou o êxodo de 2,3 milhões de cidadãos, que fugiram de uma crise generalizada. Os tais programas de auxílio que um dia alavancaram o prestígio de Chávez e lhe garantiram votos foram superados pelo desabastecimento generalizado. Voltando à relação entre Lula e Maduro, e a recepção calorosa que o Palácio do Planalto deu a um líder condenado internacionalmente, pode haver outras respostas além daquela que parece a mais óbvia: um alinhamento ideológico.

A ambição de unir os países em torno de um bloco comum fortaleceria a região e colocaria o Brasil em um patamar de significância ainda maior. “Eu vejo um pragmatismo por parte do Lula. O Brasil tem uma vantagem na balança comercial com a Venezuela, que se tornou um país dependente do petróleo e agora precisa importar diversos produtos dos vizinhos”, lembra o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-professor da Unicamp e secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda durante o governo de José Sarney. Em entrevista à coluna, Belluzzo foi direto ao ponto: “Vai baixar um pouco a bola dos Estados Unidos”, referindo-se à ideia de que uma aliança entre os latinos diminuiria — pelo menos um pouco — a influência de Washington na América do Sul. “Claro que Lula quer atrair a Venezuela para esta integração.” Além do mais, o Brasil teria um protagonismo natural, uma vez que a segunda maior economia do Cone Sul, a Argentina, atravessa mais um período de instabilidade política e econômica. “Esta iniciativa (do bloco latino-americano) ainda aproxima o Brasil dos Estados Unidos.” A afirmação do professor Belluzzo tem a ver com a presença — cada vez maior — da China na América do Sul, em especial na Venezuela. Segundo o economista, uma junção dos Estados latinos também poderia desacelerar a atuação dos chineses na região, para um certo alívio da Casa Branca.

Cogitou-se, ainda, que Maduro aproveitasse a amizade para pedir ajuda financeira a Lula. Pouco provável o venezuelano voltar com uma resposta positiva. O presidente da Argentina fracassou, recentemente. “Caso o Brasil viesse a se comprometer com algum auxílio poderia ser por meio da compra de energia da Venezuela… Talvez uma linha de fomento para empresas brasileiras construírem torres de transmissão, na região Norte, e ampliarem a compra de eletricidade.” A descrença do professor Belluzzo quanto à possibilidade de o Brasil aprovar um empréstimo a Maduro é remota diante da incapacidade da Venezuela em honrar compromissos. Hoje, a dívida externa da Venezuela está perto dos US$ 150 bilhões.