Projetos de arquitetura premiados nas periferias e em favelas? Tem, sim, e são lindos

Construído a partir de um sonho, A Casa do Cafezal foi projetada pelo Coletivo Levante, que, liderado por Fernando Maculan e Joana Magalhães e Kdu dos Anjos (fundador do Centro Cultural Lá da Favelinha), reúne arquitetos, artistas, moradores e profissionais de sustentabilidade, mobilidade, topografia, engenharia, design e paisagismo em um laboratório de ideias que tem no Aglomerado da Serra (Belo Horizonte) seu principal território de atuação. Carinhosamente apelidado de “barraco” pelo Kdu, a casa/galeria está entre os finalistas de um concurso internacional de arquitetura, competindo com mais de 1.600 moradias no mundo. Só no Brasil, são mais de 161 casas disputando o mesmo prêmio. Construída a partir de materiais próprios da periferia: o tijolo, o cimento, a cidade e sua vista espetacular, a casa se encaixa perfeitamente na paisagem por meio da escolha dos materiais, das cores, texturas e aproveitamento do terreno. Com uma implantação adequada às características angulosas e difíceis do terreno, o projeto mereceu atenção redobrada às questões de iluminação e ventilação, conferindo, a partir a proposta, qualidade ambiental. Ao minimizar a movimentação de terra e aproveitar-se do terreno natural ao máximo, reduziu custos. Com 66 m², a construção foi erguida em três níveis: no térreo, encontra-se a entrada, sala/cozinha, banheiro, lavanderia e deck; no segundo andar, distribuem-se o quarto, banheiro e varanda; e, por fim, o terceiro andar, que, na laje, recebeu imenso terraço que se abre para a paisagem. Espaço não falta para receber os amig@s.

Qualidade estética? Tem de sobra. É lindo porque se apropriar do repertório construtivo tão comum em mutirões, utilizar estruturas e fechamentos de tijolos aparentes em abundância no mercado local, cuidou do fluxo das águas de chuva e tratou de absorvê-las no exíguo terreno, e inundou de luz, sol, vento e temperatura fresca o ano todo além de permitir uma vista maravilhosa das janelas. Atendeu as expectativas de seu morador. Precisa de mais alguma coisa para ser linda? Algum problema para levantar a obra? Talvez o uso do clássico bloco de 8 furos que, assentado na horizontal, revelando sua face frisada ou “de comprido”, gerou alguma estranheza aos pedreiros acostumados a assentar o bloco em pé por causa da rapidez no assentamento e no rendimento do material. Cabreiros, reclamaram um tantinho até que entenderam que o assentamento daquele jeito garantia uma boa temperatura em todas as estações do ano. Combinado com blocos de concreto, respondeu perfeitamente às necessidades estruturais da obra. 

Este é o segundo trabalho erguido pelo Coletivo Levante*, criado em 2017 a partir do encontro do artista Kdu dos Anjos e do arquiteto Fernando Maculan (MACh Arquitetos). Desta união, nasceu o Centro Cultural Lá da Favelinha, concluído em 2021, que recebeu os prêmios de arquitetura do IAB-MG, do IAB-BR, do Instituto Tomie Ohtake, além da indicação para o Prêmio Oscar Niemeyer. Dá para criar espaços confortáveis, bem utilizados, incríveis, geniais, premiados em lugares que os entes federativos insistem em não regularizar? Dá, sim. Empresas, técnicos e profissionais capacitados e gente com vontade de fazer e acontecer tem. Falta o quê, então? Vontade política. 

Favelas e periferias são algumas das palavras popularmente utilizadas para designar a diversidade e variedade de assentamentos populares autoproduzidos e autoconstruídos ao longo de décadas e que, praticamente consolidados, espalham-se pelas bordas das cidades. As pessoas, pequenos negócios e empresas já moram e trabalham em assentamentos informais, loteamentos clandestinos, vilas e um sem-número de outras configurações urbanas e territoriais. O que todos têm em comum são os conflitos fundiários e ameaças de remoção destes assentamentos precários, que marcam a vida de quem legitimamente quer ter o direito de realizar uma vida boa, de fazer as suas escolhas como qualquer cidadão que vive na cidade e que está “dentro da lei” urbana. Infelizmente, no Brasil, a irregularidade urbana nas cidades brasileiras virou regra em vez de exceção. 

Projeto do Coletivo Levante disputa prêmio internacional de arquitetura com mais de 1.600 moradias  (Leonardo Finotti/Divulgação)

Viver de forma irregular, em condições precárias de moradia, não é uma vontade dos cidadãos vulneráveis. Não houve proposta pública ao longo dos séculos que lhes garantisse acesso a políticas habitacionais adequadas ao seu perfil socioeconômico. Daí, a regra. O Estatuto da Cidade criou, ainda em 2004, os instrumentos institucionais que podem viabilizar o reconhecimento formal da posse do terreno pelos municípios como primeira etapa de adequação destes territórios aos padrões urbanísticos e ambientais do restante da cidade. Neste ponto, o Coletivo Levante apresentou-se ao mundo, como um modelo possível para a realização de projetos, obras e programações através de sua forma de atuação ao diferir em parte dos trabalhos de assessoria técnica e outros dispositivos legais e acadêmicos voltados para projetos de habitação de interesse social e comunidades carentes (carência de serviços especializados, como arquitetura) na medida em que atua na abundância de agentes e manifestações culturais destas comunidades, formando redes e relações afetivas, ativando culturas e potências latentes das comunidades. Dá para fazer arquitetura, urbanismo e paisagismo de qualidade em áreas ilegais? Claro que dá. Só faltam as ações práticas dos gestores públicos para resolver a questão secular da posse da terra e o investimento em ATHIS.

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*Para a elaboração da coluna, foram utilizados os portfólios do Coletivo Levante e a ficha técnica enviada ao concurso Building of the Year 2023, promovido por Archdaily – Award Category: Houses