Revolta popular em Israel acende alerta sobre a queda da democracia no planeta e guerra de proporção mundial

Ocorrida entre 1936 e 1939, a Guerra Civil Espanhola é considerada o embrião da Segunda Guerra Mundial, que eclodiu no mesmo ano em que acabou o conflito na Espanha. O confronto entre as forças fascistas do general Francisco Franco — que saiu vitorioso e governou o país ibérico até 1973 — e o exército republicano teve mais de 500 mil mortos, contou com ajuda externa de ambos os lados e mostrou como tensões em diferentes partes do globo se complementam. Comunistas de todo o mundo frequentaram o front republicano. Já os nazistas deram suporte a Franco. Nove décadas depois, ventos autoritários voltam a soprar no planeta, como aponta um relatório da Economis Intelligenc, uma pesquisa do Economist Group que faz análises econômicas e de desenvolvimento politico a nível global. Em comparação a 2021, houve um aumento de 0,1 ponto em uma escala de 0 a 10, ficando o mundo com nota 5,29. Porém, é uma média bem abaixo do nível apresentado no período pré-pandêmico e também do recorde global, de 5,5, atingido em 2008 — antes da crise financeira global —, 2014 e 2015. Não é por acaso que o tema ganhou tanto destaque nos últimos tempos e tanto tem se falado em proteger a democracia. O último alerta ocorreu em Israel, em manifestações nas quais a população luta contra alguns desmandos do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que quer fazer uma reforma no Judiciário para aumentar seu poder. Recentemente, México, Peru e China também sofreram com levantes em situações que tinham no mínimo uma coisa em comum: a verve autoritária do governo local. Ataques como esses têm sido constantes e geram o questionamento: a democracia está em risco no mundo? Para os especialistas, esse tema é muito complexo, visto que, quando se fala neste regime de governo, é preciso considerar que ele está em “constante transformação”.

“A democracia é um formato de organização da sociedade que está inacabado, o que faz com que vá estar sempre se transformando e incorporando novos elementos e desafios”, explica José Maria de Souza, doutor em ciência política pelo DCP USP e diretor da faculdade Rio Branco. Na sua visão, o regime democrático tem sofrido ameaça nos últimos dez anos, com uma sucessão de crises econômicas que não conseguem se resolver facilmente. Igor Lucena, economista e doutor em relações internacionais pela Universidade de Lisboa, defende que estamos passando por um momento de teste e readequação. “O que acontece é que, diferente do passado, as nações autoritárias testam os limites da democracia. Há uma clara competição na qual esses Estados autoritários tentam provar que o seu modelo é melhor. Existem pessoas e órgãos que defendem os regimes autoritários dentro do regime democrático”, explica. Lucena lembra que se tem uma falsa visão de que a democracia é o objetivo de todos os Estados. Isso, assegura ele, não é verdade. 

Márcio Coimbra, coordenador de pós-graduação em relações institucionais e governamentais do Mackenzie, destaca que hoje há um flerte maior com a autocracia, que começa com a extrema-direita ou a extrema-esquerda. Ele aponta que a democracia não está “em pleno risco, mas está sob ataque”. “E, à medida que temos governos de direita ou esquerda que se aproximam do extremo, há riscos muito sérios”. Ele alerta que vivemos hoje um período muito similar ao que se vivia no princípio da Segunda Guerra Mundial, onde se tinham líderes autocratas muito fortes, que levaram a Europa inteira a uma guerra. “É possível que a gente esteja vivendo o embrião de uma nova guerra de proporção mundial, que nasce na Ucrânia. Mas é um conflito que pode se espalhar pelo mundo inteiro. Quando se tem muitas autocracias no mundo e menos democracia, isso significa que a paz mundial e a coabitação fica mais difícil. Temos tradicionalmente na história a ocorrência de conflitos. Só se consegue manter o equilíbrio com sistemas democráticos consolidados e sem ataque a eles.”

democracia em queda

Os especialistas defendem que uma forma de proteger a democracia é o que tem sido feito quando as pessoas percebem que ela está ameaçada: manifestações. “Pessoas irem para as ruas ajuda na manutenção da democracia e mostra que os poderes são limitados e harmônicos e precisam se autofiscalizar. Mas acima dos poderes está o povo e, quando ele vai para rua, está falando o que quer ou não quer”, diz Lucena. Em decorrência das manifestações, o premiê israelense recuou no seu processo de reforma judicial. Porém, apesar de ser um bom mecanismo, Coimbra alerta para a necessidade de saber se aqueles manifestantes estão engajados com a pauta principal. “Não necessariamente pessoas na rua mostram que a gente tem engajamento na democracia, mostra que temos, muitas vezes, envolvimento em autocracias e antidemocracia”, alerta, citando o episódio de 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos. “Em democracias mais consolidadas, as manifestações podem servir para empurrar o governo na parede, e tendem a ter impacto positivo. Mas quando se fala em regimes mais jovens, geralmente, o povo na rua pode significar pessoas que estão defendendo a deterioração da democracia.” 

Democracia na América Latina em queda

Um ponto de destaque do relatório da Economis Intelligenc é o declínio democrático na América Latina. De todos os países da região, apenas Chile e Uruguai foram considerados democracias plenas. Brasil, Argentina e Colômbia, por exemplo, estão listados como democracias em declínio. Por outro lado, Peru, Paraguai e Equador aparecem como regimes híbridos. Já Cuba, Nicarágua e Venezuela são considerados países autoritários. Lucena e Coimbra explicam o que diferencia os chilenos e uruguaios do restante da região. “Não existe esquerda e direita nem ataques claros à democracia. Nesses países, há uma visão de que o sistema funciona, e qualquer mudança precisa ser feita dentro da ordem democrática. Chile e Uruguai são as maiores rendas per capita da América Latina. Esse fator, junto com a alta escolaridade e menos revoltas revolucionárias, faz com que sejam considerados democracias plenas”, explica Lucena. Coimbra destaca o Judiciário independente e amparado pelo Estado de direito, o respeito pleno aos direitos humanos, o parlamento aberto, a diminuição do grau de corrupção, a moeda estável, a pobreza controlada e as regras fiscais de controle. “São elementos que mostram que esses dois países estão à frente de outros, inclusive do Brasil.”

Nos últimos 14 anos houve um declínio da democracia na América Latina. Para os especialistas, o que explica essa queda é a relação com a qualidade de vida. “Você tem os processos democráticos desde aberturas e fim das ditaduras, durante certo período tem uma melhora, mas quando entra no século XXI, as melhoras diminuíram e a produtividade caiu, o que fez os países tomarem rumo protecionista. Há uma ligação econômica de que a democracia não está resolvendo os anseios da população”, fala Lucena. Para Coimbra, a América Latina é dotada de tensão autoritária muito grande e há regimes autoritários, autocráticos e totalitários como o cubano e venezuelano. “É uma região que busca salvador da pátria, um grande líder. Não são países fincados em instituições, onde os atores políticos simplesmente passam pela política e tocam sua vida seguindo suas profissões. Temos pessoas enraizadas no sistema politico que passam a vida toda fazendo politica.”

democracias

O que faz uma nação ser democrática?

Quando se fala em democracia, muito se associa ao ato de votar e escolher um candidato que será o seu representante, porém os especialistas alertam que vai muito além disso. Esse é só um ponto de algo muito maior. “O que faz uma nação ser realmente democrática são as instituições. As nações mais democráticas do mundo não idolatram pessoas nem líderes, não têm políticos acima da população. Elas têm como idolatria as instituições, a maneira de se organizar politicamente e a garanta de direitos iguais para maioria e minoria, além de processos políticos, legislativos e judiciários que sejam justos, claros e constantes”, afirma Lucena. 

“O voto é um ponto essencial para democracia, mas, além dele, um sistema amplo onde temos liberdades individuais e econômicas, que nos permite exercício de opinião, pensamento, imprensa livre, pessoas que podem ter seus próprios negócios e direito à propriedade, além de negociar com países estrangeiros… O Estado precisa garantir esses direitos”, diz Coimbra. “A democracia tem vários requisitos. Somente a eleição não garante democracia. É importante ter constituição, império da lei e liberdades civis”, acrescenta Jose Maria de Souza. Ele ainda salienta que as pessoas precisam ter o direito de contestar o líder e alternância de poder é um “princípio democrático muito importante”. “Quando falamos que a democracia se enfraquece, não é só na liderança disposta em concentrar poder, mas setores da sociedade que apoiam essa decisão. A drenagem de forças da democracia não vêm só da liderança, vêm de parte da sociedade. É um pensamento coletivo”, conclui.