‘Sem ajuda dos EUA, área até Kiev poderia ser invadida pelos russos’

A guerra entre Rússia e Ucrânia completa dois anos nesta semana em um contexto onde não há indícios de que o conflito deve terminar tão cedo. Enquanto isso, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, enfrenta ceticismo dos americanos em fornecer mais ajuda militar e financeira. Na visão do professor de relações internacionais do Ibmec, Carlo Cauti, sem o suporte dos Estados Unidos e da União Europeia à Ucrânia, os russos poderiam invadir uma área que se estende até a capital ucraniana, Kiev. Confira a conversa que o economista e apresentador da Jovem Pan, Samy Dana, realizou com o especialista.

Há uma vitória iminente em algum desses dois países na guerra? Existe um ganhador no seu entendimento? No caso da guerra da Ucrânia e da Rússia, os dois, podemos dizer, estão perdendo porque, se em tese, uma guerra é ganha pelo país que controla o território do outro, ou pelo menos boa parte do território do outro, se a gente utilizar esse critério, de fato, a Rússia está ganhando a guerra porque quem controla parte do território ucraniano, cerca de 20% do território ucraniano, é a Rússia. Quem tem tropas próprias no território ucraniano é a Rússia e não vice-versa. Mas, ao mesmo tempo, a Rússia perdeu um número muito expressivo de homens, estamos falando de algo entre 300 mil e meio milhão de soldados russos que já pereceram nessa guerra que, lembramos, começou há dois anos atrás. E isso é um número gigantesco, sem contar os tanques perdidos, os efeitos econômicos, como você bem lembrou no começo também, a destruição de parte da frota russa do Mar Negro. Ou seja, é um desastre estratégico até para a Rússia que, em tese, estaria ganhando do ponto de vista tático, ou seja no dia a dia dessa guerra.

Agora, no caso da Ucrânia, mesmo que a Ucrânia consiga repelir a Rússia do seu território, e a gente não pode falar se isso será possível ou não, mesmo que a Ucrânia consiga de alguma forma fazer isso, a Ucrânia hoje é um país devastado, é um país completamente devastado. A maioria das suas indústrias não existem mais, um terço da população ucraniana já saiu do país. Era já, antes da guerra, o país mais pobre da Europa e hoje é um país que só continua existindo graças à ajuda que vem da União Europeia e dos Estados Unidos. Se não, a Ucrânia simplesmente já teria implodido, infelizmente, há muito tempo.

Até quando vai essa guerra? O que falta para termos um final da guerra? Lembrando que isso afeta não só o agro, mas o preço de petróleo e outras outras dimensões que acabam respingando no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Afeta tudo, né? Terras raras, afeta o preço também de fertilizantes, afeta uma série de questões. Olha, todo mundo, inclusive eu, gostaríamos que essa guerra não somente acabasse amanhã como nunca tivesse iniciado. Mas, se a gente pensar em guerras recentes, em exemplos mais próximos dos nossos dias, infelizmente o cenário não é positivo. Se a gente pensar na guerra civil da Síria, que começou em 2011 e ainda hoje em alguns, vamos dizer assim, em algumas regiões do país está em andamento, passaram-se 13 anos e ainda não acabou. Se a gente pensar na guerra na Líbia, também é a mesma coisa. O país está devastado, é um país que se tornou um Estado falido. Se pensarmos na Somália, também a Somália desde os anos 1990 não consegue voltar a ser um estado normal. Então, é muito complicado poder fazer qualquer tipo de previsão sobre quanto essa guerra vai acabar.

Agora, com certeza, podemos dizer que se os americanos e os europeus, por alguma razão, pararem de entregar dinheiro e armamentos de forma maciça para a Ucrânia, os russos teriam uma enorme facilidade em conquistar boa parte do país ou todo o país, vai ser muito complicado. A Ucrânia é muito grande, os russos hoje não têm um o número suficiente de homens para isso, mas pelo menos até o território que chega no rio que atravessa a Ucrânia na metade, isso seria possível, basicamente até Kiev, os russos poderiam chegar com uma certa facilidade caso americanos e europeus não entreguem mais armas e dinheiro em grande quantidade para os ucranianos.

O ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou em um comício que poderia encorajar a Rússia ‘a fazer o que quisesse contra países da Otan’ em países que não cumprissem a regra de gastos militares de 2% pelo PIB estipulado pela própria Otan. Até que ponto a abordagem de Trump ameaça a estabilidade da Otan em longo prazo? O maior medo, o maior terror hoje dos líderes europeus é que Donald Trump ganhe as eleições nos Estados Unidos. Não pelas falas do Trump, né? Pelas, vamos dizer assim, pela dimensão pirotécnica do Trump do ponto de vista verbal. Mas, pelo problema que Trump representa no estado profundo americano, seja na parte militar, de inteligência, etc. Porque ele representa a chegada ao poder daquela parte considerável da sociedade americana que não quer mais morrer pelo resto do mundo, não quer mais se envolver em conflitos que não considera como essenciais para a própria segurança nacional. E a Ucrânia não é considerada essencial por boa parte dos americanos. Ninguém quer morrer nos Estados Unidos, ninguém quer morrer por Kiev, ninguém quer morrer pelos países bálticos, ninguém quer morrer nem pela Polônia ou pela Romênia ou pela Bulgária, países poderiam ser as ‘próximas vítimas do Putin’.

Os americanos estão cansados, é aquilo que em termos geoestratégicos se fala de ‘cansaço imperial’ porque eles se envolveram em um monte de guerras que foram inúteis, né? A guerra do Afeganistão, por exemplo, durou 20 anos e morreram milhares de americanos. Saíram do Afeganistão em 2022 e o Afeganistão voltou a ser um país dominado pelos talibãs. Ou seja, não adiantou nada. Entraram no Iraque para derrubar Saddam Hussein, saíram do Iraque, ainda estão na verdade presentes no Iraque e hoje o Iraque voltou a ser um país onde não há uma democracia plena. A mesma coisa na Bósnia, podemos falar também da Somália. Todas as vezes que os americanos tentaram exportar a democracia, como se dizia há 20 anos atrás, falharam miseravelmente e muitos jovens americanos morreram por causa disso. E os americanos não querem mais isso, não querem mais pagar imposto para financiar guerras longe de casa, não querem mais morrer por lugares que eles não consideram como fundamentais para a própria existência, para a própria vida.

Taiwan é um caso à parte. Taiwan poderia ser uma ameaça se a China invadir Taiwan, poderia ser uma ameaça sistêmica para os Estados Unidos. Moral da história: os europeus têm medo que se Trump chegar à Casa Branca, de fato, os americanos vão começar a se desempenhar da Europa e o custo da defesa da União Europeia, em geral, mas da Europa como um continente geográfico, a Noruega, por exemplo, não faz parte da União Europeia mas faz parte da Otan. A defesa do continente europeu, vai cair nas costas, nos ombros dos cidadãos europeus, que também não querem pagar mais impostos para financiar uma indústria de defesa e não querem também se envolver em conflitos, mesmo que sejam conflitos que falam, que dizem a respeito da própria defesa deles. Então é um problemaço para os europeus, com certeza.

Se a gente fosse olhar para o agro brasileiro, quais são os riscos que estão relacionados à guerra neste momento? Os riscos mais graves da guerra da Ucrânia já passaram, foi logo no começo, quando o Brasil teve um problema de entrega de fertilizantes russos. Isso foi resolvido, o Brasil está começando a produzir fertilizantes também, tem outros canais de importação. Então, o risco mais grave, imediato foi solucionado. A Rússia continua importando produtos brasileiros de uma dimensão muito menor, tem triangulações que estão sendo feitas com outros países. Lembrando que a Rússia está fora do sistema Swift após o começo da guerra.

Então, assim, do ponto de vista do mercado russo, o Brasil perdeu um pouco, mas não perdeu tanto assim. O mercado ucraniano nunca representou um grande mercado para as exportações brasileiras do agronegócio. E também a questão dos fertilizantes novamente já foi resolvida, pelo menos em parte. Agora, qual que é um dos possíveis, vamos dizer, efeitos, não tanto riscos. O aumento do preço internacional, por exemplo, dos grãos. Mas isso até seria positivo para a indústria, para o agronegócio brasileiro porque o Brasil está se tornando um produtor cada vez mais relevante de grãos. O Brasil sempre importou grãos, mas está começando a produzir internamente grãos. Isso então seria positivo porque os produtores brasileiros ganhariam mais. Mas a inflação de alimentos também aqui no Brasil sofreria um certo impacto.

O maior risco que o agricultor, produtor rural brasileiro, deve ficar de olho é num possível risco de conflito entre Estados Unidos e China. A China é o maior comprador de produtos brasileiros. O Brasil ainda não tem alternativas ao mercado chinês, não conseguiu diversificar as compras do mercado chinês, é muito complicado, é lento. Já há um certo movimento, por exemplo, em direção à Índia. Mas, se os americanos e chineses entrarem em conflito, até mesmo por um acaso, porque quando há muitas trocas, muitas passagens de navios militares no Estreito de Taiwan ou no Mar Chinês Meridional, algum acidente pode acontecer. E se isso acontecer e os chineses forem retirados do Swift como os russos, vai ser um problemaço aí, sim, para o agricultor brasileiro. Então o maior risco não é hoje a Rússia e, sim, é a China.

No próximo mês a gente vai ter uma eleição na Rússia. Putin deve estender seu mandato por mais anos. O que isso muda nesse tabuleiro geopolítico? Porque de certa forma, ele sendo reconduzido dá uma sinalização de força que pode a afastar ou ajudar em algumas negociações. Com certeza Putin vai ganhar as próximas eleições, que não serão livres na Rússia. Ele vai ganhar mais um mandato. É possível que ele fique até 2036 ou até mais, ele vai ter uma certa idade. Vamos ver até se a parte biológica do Putin vai aguentar. Agora, a Rússia, independentemente de como essa guerra terminar, a Rússia não vai desaparecer. E a Rússia não vai sumir como país gigantesco, riquíssimo em recursos naturais, com uma certa capacidade até tecnológica.

Os russos têm uma capacidade de desenvolver certas tecnologias, especialmente em âmbito militar, mas também espacial etc. Em um certo ponto, todo mundo já é consciente do fato de que o mundo vai ter que negociar com a Rússia, de um jeito ou de outro. Não dá para excluir para sempre a Rússia do tabuleiro internacional. Isso vai ser muito complicado porque vai significar, de fato, uma reintrodução, readmissão de Putin no processo internacional. Pode acontecer no âmbito do G20, pode acontecer em outras situações, mas a Rússia vai voltar a se sentar na cadeira, na mesa dos grandes do mundo querendo alguns países ou não. Isso vai ser muito ruim para a Ucrânia porque se isso acontecer em termos rápidos, razoavelmente rápidos, a Ucrânia vai ter que aceitar a perda de parte do seu território.

Já que alguém está falando sobre isso, o ex-ministro da defesa ucraniano acabou de ser substituído porque ele mesmo falou abertamente sobre a necessidade de congelar o conflito porque era impossível para a Ucrânia reconquistar o território perdido. Ou seja, até mesmo na Ucrânia já se fala em terminar assim como está, a Rússia fica com território que conquistou, a Ucrânia fica com o resto e o mundo volta à normalidade, ou a tentativa de normalidade. Mas, isso seria muito complicado para o Zelenski, que perderia imediatamente o poder para a própria Ucrânia, que poderia entrar em guerra civil. Além de gerar um medo profundo em países próximos da Rússia, como os países bálticos, como a Ucrânia, como a Polônia ou a Moldávia, onde há presença de minorias russas importantes, na Letônia, Lituânia, Moldávia ou é são inimigos históricos da Rússia como a Polônia. Então, respondendo a sua pergunta, com certeza a vitória de Putin vai estabilizar a situação dentro da Rússia, o poder que vai continuar sendo concentrado na figura dele. E o mundo vai ter que, infelizmente, voltar a negociar com o responsável pela invasão de um país soberano como a Ucrânia.