Congresso precisa regulamentar marco temporal

Por 9 votos a 2, o Supremo Tribunal Federal decidiu pelo fim do Marco Temporal das Terras Indígenas. A tese era uma espécie de “regra do jogo”, pois definia que só poderiam ser demarcadas como terras indígenas as áreas que esses povos ocupavam na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Com o fim dessa regra, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) afirma que qualquer área do Brasil, seja urbana ou rural, inclusive com escritura registrada em cartório, poderá virar indígena, se comprovada por um laudo antropológico que o índio realmente esteve ali no passado. Os prefeitos de cidades como Terra Roxa e Guaíra, no Paraná, calculam que podem perder até 20% do território dos municípios para terras indígenas. O fato deverá afetar agricultores e a economia da região. Confira a entrevista com o diretor jurídico da CNA, Rudy Ferraz.

Áreas escrituradas e compradas de boa fé podem ser transformadas em áreas indígenas agora com o fim do Marco Temporal? Essa é a grande preocupação. A decisão do Supremo Tribunal Federal retira toda previsibilidade do processo de demarcação. Áreas registradas, áreas com títulos expedidos há mais de 100 anos podem ser, sim, reivindicadas pelas comunidades indígenas e, fatalmente, o processo sobre demarcação pode recair sobre elas. Então essa decisão reestabelece um quadro de insegurança jurídica ao modificar essa jurisprudência que há muitos e muitos anos já se consolidava no Supremo Tribunal Federal.

Com o fim do Marco Temporal, qualquer área no Brasil pode virar terra indígena? Essa é justamente a nossa preocupação. O Marco Temporal era uma baliza objetiva: qualquer cidadão poderia ter certeza de que seu imóvel poderia ou não ser reivindicado para uma terra indígena. Consequentemente, a retirada dessa baliza objetiva, estabelecendo os conceitos extremamente subjetivos ao processo, relativizam como um todo a segurança jurídica. Ou seja, qualquer área onde uma comunidade indígena seja reivindicada para uma demarcação poderá, sim, eventualmente ser demarcada, sofrendo todas as consequências de um processo de demarcação. Hoje, quais são elas? Justamente a ausência de indenização.

Para que essas demarcações se tornem reais, precisariam de laudos antropológicos ou não? Essa é uma preocupação muito grande do setor. O processo de demarcação de terras indígenas se inicia com uma auto declaração dos próprios índios se reconhecendo como índios e reivindicando uma determinada área. E hoje, sem a baliza objetiva que a Constituição estabeleceu que seria o Marco Temporal, nós teremos uma ausência de previsibilidade. Tudo será embasado por um laudo antropológico, nos quais esses índios eventualmente vão arguir que seus laços culturais permanecem na área, seus laços espirituais permanecem com a área, não podendo qualquer cidadão ter previsibilidade que essa área vai ser reivindicada. Então, o processo vai correr praticamente e exclusivamente em face de um laudo antropológico que eventualmente esvazia todo o direito de defesa daqueles afetados.

Como um proprietário de imóvel no Brasil pode saber se a área que ele detém com propriedade privada pode ser reivindicada? Qualquer cidadão brasileiro, seja ele urbano ou rural, não terá a segurança jurídica para poder afirmar que seu imóvel poderá ou não ser reivindicado por uma comunidade indígena. Isso instala um verdadeiro caos tanto no campo quanto nas cidades, que muitas vezes não estão tendo consciência do impacto que essa decisão pode gerar. Então, é importante a gente enveredar os esforços para que o Congresso Nacional aprove o projeto de lei restabelecendo a segurança jurídica, restabelecendo o Marco Temporal previsto na Constituição.

Por que o STF revisou uma decisão que a própria Corte já havia tomado? O Supremo revisitou novamente esse tema. Essa é uma jurisprudência consolidada há muitos anos que trouxe uma previsibilidade, trouxe uma pacificação para os processos de demarcação e agora, ao revisitar ou mudar esse entendimento, reescrevendo o texto constitucional, ele instala justamente essa preocupação que nós temos. Hoje temos mais de 200 processos judiciais, nós temos mais de 450 reivindicações, mais de 120 áreas em estudo. Isso tudo provavelmente irá avançar em cima de áreas consolidadas, em cima de cidades e nós viveremos um grave conflito, graves consequências desse processo.

Há alguma forma, ainda olhando sobre o aspecto do Judiciário, de reverter a decisão do STF sem chegar no Congresso? O Supremo vai enfrentar agora, na próxima na quarta-feira, a fixação da tese. A fixação da tese é justamente o que vai vincular todas as decisões judiciais, já vai vincular a administração pública. E nessa fixação da tese, além da discussão do Marco Temporal, ao que tudo indica que já foi superada pelos ministros na manifestação dos votos, nós vamos discutir também a questão da indenização. Nós entendemos que nós não podemos corrigir uma eventual injustiça em relação aos índios cometendo outra injustiça com os produtores rurais. Ninguém pode ser violado no seu direito de propriedade, ser expropriado dos seus direitos propriedade sem nenhum tipo de compensação. Isso sim gera um conflito. Estamos trabalhando, distribuindo memoriais, conversando em audiências com os ministros para que garanta a indenização prévia e justa aos produtores e pela União. Isso é o mínimo, eventualmente, que pode ser feito para compensar essa drástica mudança de jurisprudência que está e vai instalar uma insegurança jurídica muito grande no país.

Você já viu algum agricultor recebendo indenização prévia com preço de mercado da terra em casos como esse? É justamente nisso que nós vamos trabalhar. Nós queremos que, pelo menos, o Supremo garanta que o produtor rural só saia eventualmente do seu imóvel com dinheiro no valor de mercado na sua conta bancária. Isso sim poderá minimizar esse impacto da perda do Marco Temporal. Ou seja, a indenização sendo prévia, ou seja, antes dele sair do imóvel, e justa. E sendo paga pela União, porque outorgar isso aos Estados é apenas empurrar o problema para frente. E, certamente, o produtor rural vai ter que entrar com várias ações judiciais, ficar anos e anos brigando sem receber esse tipo de indenização. Por isso, o mínimo que se possa pensar é que qualquer um eventualmente só vai perder a sua propriedade se for compensado financeiramente por ela.

Muita gente está comemorando nas redes sociais o fim do Marco Temporal e alegando que agora serão devolvidas as terras que foram apossadas por alguns, que eram terras da União. Esse raciocínio está correto? Esse raciocínio não está correto. O Marco Temporal, sim, era um importante instrumento de pacificação e atendimento das próprias comunidades indígenas. Porque o Marco Temporal, ao trazer um parâmetro objetivo para o processo de demarcação, vai estabelecer que aquela área é ou não uma terra indígena. Porém, aquela área, não tendo uma ocupação das comunidades indígenas em 5 de outubro de 1988, poderá ser atendida pela União. Ou seja, a União poderá atender essa reivindicação social indenizando o produtor. Então, era um mecanismo que nós tínhamos para poder pacificar as relações no campo. E esse mecanismo acabou sendo retirado pelo Supremo com essa decisão. Isso certamente trará uma insegurança jurídica para os próprios índio, porque vão reivindicar muitas áreas e certamente os produtores vão questionar judicialmente, administrativamente e nós não vamos ter uma solução, se não buscarmos a aprovação do projeto no senado.

O PL do Marco Temporal, se aprovado no Senado, tem validade? Ele se sobrepõe a uma decisão de inconstitucionalidade tomada pela Corte? O Supremo Tribunal Federal decidiu acerca do regime das demarcações de terras indígenas sobre o aspecto das normas vigentes. Hoje nós não temos uma lei específica que regulamenta esse texto constitucional. Muitos ministros durante o julgamento ressaltaram “nós estamos analisando sobre a égide dos normativos vigentes, na ausência de regulamentação da parte do Congresso Nacional, nós vamos decidir”. Então, nossa expectativa, é que com aprovação do PL, ele se sobrepõe a essa decisão do Supremo. Isso porque a decisão vinculante do Supremo Tribunal Federal não vincula o Congresso Nacional. O Congresso tem autonomia institucional para poder regulamentar e decidir isso. Nada impede que futuramente alguém questione essa nova lei no Supremo, e o STF vai reapreciar a questão já sobre uma nova lei vigente aprovada pelo Congresso Nacional. Se de fato o projeto for sancionado pelo presidente da República, ele passa a vigorar em todo o país.

Lula se voltará contra o STF dando então um voto de confiança à decisão do Congresso se assim for, acabando com o Marco Temporal das Terras Indígenas? Isso é uma questão política. Nós temos que aguardar aprovação no Senado para ver.

O produtor rural pode perder as terras já amanhã? As pessoas querem saber como é que elas dormem depois de hoje? Os produtores não vão desistir, nem nós. Vamos trabalhar fortemente para que aprove no Senado essa lei. Mas os produtores terão, sim, que ficar atentos, promover as defesas administrativas e judiciais necessárias para resguardar o direito de propriedade. Nós vamos aqui, tanto no Supremo Tribunal Federal quanto no Congresso, batalhar para resguardar esse direito de propriedade do produtor rural. Se o Senado não decidir, todos os processos jurídicos que estão sendo revisados levarão em conta a decisão do STF que acabou com o Marco Temporal? Isso dá uma condição favorável ao indígena, em detrimento do proprietário de terra? Essa é a nossa preocupação. A decisão do Supremo retira praticamente os instrumentos que o produtor rural tinha para poder questionar um processo de demarcação de terras indígenas. Então, qualquer área, efetivamente sendo reivindicada pelas comunidades e atestada por um antropólogo, poderá ser demarcada como terra indígena. Ou seja, a baliza que a própria Constituição estabeleceu para sabermos o que é ou não uma terra indígena foi justamente retirada por essa decisão do Supremo. Por isso que nós precisamos que o Congresso Nacional regulamente esse tema e reestabeleça a paz, a segurança jurídica, a previsibilidade para que o produtor rural possa fazer o que mais sabe, que é produzir alimento para o Brasil e para o mundo.