Direito do Trabalho – Introdução – Parte III

I) Colapso do capitalismo – Era Vargas e o “trabalhismo”

 

O surgimento das primeiras normas trabalhistas pode ser entendido como um processo que ocorreu e se desenvolveu no espaço antes ocupado pelas relações de trabalho informais (para não dizer servis) e compulsórias (escravidão), marcado pela ausência de sistematização e superficialidade, traduzindo a resistência das elites às transformações nascentes (principalmente os grandes latifundiários do café), já que a transição para o trabalho livre, mais do que normas que o tornassem juridicamente livre, implicava em um conjunto de alterações nas relações sociais cotidianas que só puderam ser construídas, como de regra ocorre em mudanças estruturais, através de um processo lento e difícil, que ainda está por terminar.

 

As primeiras normas, consideradas as características de organização econômica existente no Brasil, País de enorme dimensão territorial, surgiram para regular o trabalho do setor de serviços, particularmente aquele prestado nas ferrovias e portos, uma vez que fundamental para uma economia baseada na exportação de produtos agrícolas (agro-exportadora). Fato é que no período compreendido entre 1888 e 1930 as leis editadas sem qualquer sistematização, expressavam um caráter eminentemente voltado às questões sociais, sem contudo representar a construção de um ramo autônomo do Direito.

 

Os aspectos econômicos e políticos mundiais, como aliás não poderia deixar de ser, influenciavam os rumos da produção e das relações sociais no Brasil, de forma marcante e profunda: seguíamos a trajetória do liberalismo, a despeito de em uma versão “Brasil”, já que a existência do escravismo impedia a integral aplicação do modelo, que era representado pela elite formada em sua grande maioria pelos latifundiários do café. Uma das premissas de tal modelo econômico era a de que o mercado se auto-regulava, inclusive no tocante às relações entre empregadores/empresas e empregados/trabalhadores. Assim, aqui no Brasil, além do liberalismo não-clássico, fatores como a ausência de organizações de trabalhadores; inexistência de uma tradição e modelos na esfera legiferante; um território com dimensões continentais, por isto mesmo organizado de forma regionalizada; situação política interna com contornos incipientes e etc., explicam a rarefação de legislação na área trabalhista.

 

Entretanto, em fins de 1930 o mundo assiste estupefato o colapso do capitalismo liberal determinado pela crise econômica de 1929 (crashda Bolsa de Nova York em 15/10/1929), que redundou no abandono das práticas liberais e a adoção do intervencionismo do Estado, mudança esta que tem importantes e sérias repercussões no mundo, inclusive no Brasil. O dirigismo político (intervencionismo estatal) abriu portas para o surgimento de governos autoritários e totalitários, como por exemplo em Portugal, Espanha, Alemanha, Itália e, principalmente, no Brasil: a Era Vargas (1930 – 1945). Esta apertada síntese nos permite fixar com clareza a origem dos marcos balizadores e elementos caracterizadores deste 1º período compreendido entre 1888 – Lei Áurea e 1929/1930 – crise econômica mundial / início da Era Vargas.

 

Abro parêntese para rememorar que no tutorial anterior (Direito do Trabalho – Introdução – Parte II) traçamos um paralelo entre os “cercamentos” e a Lei das Terras. Agora podemos relacionar a condição dos trabalhadores, na Inglaterra, após os “cercamentos”, e escravos, no Brasil, após a Lei das Terras e abolição da escravatura: ambos foram “expulsos” do campo, posto que afastados não só dos meios de produção, mas também dos detentores destes meios de produção, passando a constituir uma classe numerosa de desempregados, socialmente marginalizados. Tais fatos são extremamente importantes para entender em que contexto histórico, político e econômico, surgiram as primeiras normas ditas “trabalhistas”, que repisando o que dissemos, tinham, no período compreendido entre 1888 e 1930, uma vocação e orientação essencialmente assistencialistas.

 

Em nível mundial, podemos perceber que a definição de direcionamento político até 1930 comportava modelos essencialmente duais: o liberalismo/capitalismo e o intervencionismo/comunismo. Não é difícil concluir, portanto, que após o “crash” de 1929, com a derrocada do modelo capitalista, cuja base era o liberalismo, abriram-se os caminhos para o crescimento da tese de seu oposto, o socialismo/comunismo, cuja base era o intervencionismo.

 

Não apenas isto ocorreu, como rendeu ensejo ao surgimento de regimes que mantiveram em seu cerne e núcleo de existência, proposições e ideais não somente teoricamente incompatíveis, como também antagônicos. Para melhor compreensão do que ora afirmado, tomemos como exemplo o que ocorreu no Brasil da Era Vargas.

 

O grande abalo na economia mundial em 1929 resultou, no Brasil, em uma profunda crise na estrutura agro-exportadora cafeeira, determinando ainda, intensificação no processo de industrialização que teve como principal objetivo a substituição de importações. Tem-se então que a transição do trabalho escravo para o trabalho livre ocorreu predominantemente no campo, nas fazendas de café e a consolidação do trabalho livre se dá com a inserção de um novo segmento econômico, o industrial, atividade tipicamente urbana, que vai abrigar trabalhadores com perfil distinto daquele até então existente. É neste contexto que ascende ao poder Getúlio Vargas, que se assumiu o papel de “líder” dos trabalhadores: instituiu, no mesmo ano em que assumiu o governo, o Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio; no ano seguinte, 1931, estabeleceu normas de sindicalização, passando o Sindicato a ser considerado um órgão de colaboração governamental; nos 04 (quatro) primeiros anos de governo impulsionou de forma significativa o processo legislativo quanto às questões trabalhistas, regulamentando o trabalho dos menores, o limite da jornada de trabalho, férias, aposentadoria e o trabalho feminino, além de criar a Carteira de Trabalho, importante instrumento de controle dos trabalhadores pelo Estado.

 

Contudo, como anteriormente dito, as mudanças deveriam ocorrer em nível de estrutura, o que efetivamente ocorreu através de uma concepção denominada “trabalhismo”, muito bem definido e explicado no texto que ora reproduzimos:

 

“No Brasil, trabalho era identificado como atividade indigna do homem livre. Era a nossa herança escravista. Considerava-se o trabalho uma atividade própria dos seres socialmente inferiores, como eram julgados os escravos. Naturalmente, uma visão desse tipo era contraditória com a política de proteção ao trabalhador que começara a ser implantada com a Revolução de 30. Para a elite política da República Velha, o trabalho era apenas um meio de assegurar a sobrevivência do indivíduo na economia de mercado. A ela não importava a sorte dos trabalhadores: cada qual que se arranjasse por si. Depois de 1930, as coisas mudaram. No discurso governamental, o trabalho era tratado como uma atividade que tinha por objetivo a auto-realização do trabalhador, e não apenas a garantia de seu sustento. Além disso, mais que uma atividade meramente econômica, era um dever para com a Pátria.” Koshiba, Luiz, Pereira, Denise M. Frayze. História Geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2004, p. 372.

 

O trabalhismo nada mais foi do que uma ferramenta do governo Vargas para controlar o movimento operário, que no dizer do Estado, resumia-se a uma “questão social”. Certo é que a partir de 1930 as questões relativas ao trabalho e ao trabalhador passaram a ter espaço na agenda política do governo, sendo ambos incorporados à vida da Nação.

II) As primeiras normas trabalhistas no Brasil

 

Fato destacadamente importante é que o modelo criado neste período não sofreu alterações dignas de nota, mormente por ter sido criado e desenvolvido em bases absolutamente autoritárias e com caráter de instrumento político de controle do Estado, não refletindo, por isto mesmo, os anseios da classe trabalhadora e da sociedade civil, como seria de se esperar.

 

Veja as principais normas trabalhistas, de âmbito Federal, criadas de 1888 a 1930:

  • Decreto nº 1.162, de 12.12.1890 – derrogando a tipificação da greve como ilícito penal, mantendo como crime apenas os atos praticados no desenrolar do movimento;
  • Decreto n.º 1.313, de 17.01.1891 – regulamentando o trabalho do menor;
  • Decreto Legislativo nº 1.637, de 05.01.1907 – disciplinando a criação de sindicatos profissionais e sociedades cooperativas;
  • Lei nº 3.724, de 15.01.1919 – acidente de trabalho;
  • Decreto nº 16.027, de 30.04.1923 – cria o Conselho Nacional do Trabalho;
  • Lei nº 4.982, de 24.12.1925 – concede férias de 15 (quinze) dias aos empregados de estabelecimentos comerciais, industriais e bancários;
  • Decreto nº 17.934-A, de 12.10.1927 – cria o Código de Menores;
  • Decreto nº 5.492, de 16.07.1928 – regulamenta o trabalho dos artistas.

** A este respeito, ver detalhes em: Delgado, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 3ª ed., São Paulo: LTr, 2004, p. 108/109.

 

Veja as principais normas trabalhistas, de âmbito Federal, criadas de 1930 a 1945:

  • Decreto nº 19.443, de 26.11.1930 – cria o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio;
  • Decreto nº 19.482, de 12.12.1930 – estabelece um mínimo de 2/3 de trabalhadores nacionais no conjunto de trabalhadores de cada empresa;
  • Decreto nº 19.671, de 04.02.1931 – cria o Departamento Nacional do Trabalho;
  • Decreto nº 19.770, de 19.03.1931 – cria estrutura sindical oficial;
  • Decreto nº 21.396, de 21.03.1932 – crias as Comissões Mistas de Conciliação e Julgamento;
  • Decreto nº 21.175, de 21.03.1932 – crias as Carteiras Profissionais;
  • Decreto nº 21.186, de 22.03.1932 – fixando a jornada de 08 (oito) horas para os comerciários;
  • Decreto nº 21.364, de 04.05.1932 – fixando jornada de trabalho de 08 (oito) horas para os industriários;
  • Decreto nº 21.471, de 17.05.1932 – regulamenta o trabalho feminino;
  • Decreto nº 22.132, de 25.11.1932 – restringe a instauração de demandas aos empregados integrantes do sindicalismo oficial;
  • Decreto Lei nº 1.237, de 01.05.1939 – regulamenta a Justiça do Trabalho (que só vai integrar o Poder Judiciário com o advento da Constituição de 1946);
  • Decreto-Lei nº 5.452, de 01.05.1943 – cria a CLT.

** A este respeito, ver detalhes em: Delgado, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 3ª ed., São Paulo: LTr, 2004, p. 110/112.

 

Independentemente do contexto de sua criação, produto da ditadura de Getúlio Vargas, apenas na Constituição de 1988, é que há um movimento no sentido de romper com o modelo estabelecido na era Vargas e cujo aprimoramento encontra-se em curso, o que se pode constatar, quer através do exame de matérias que foram objeto de recente apreciação pelo Congresso Nacional (por exemplo a 1ª etapa da reforma do Judiciário, através da E.C. 45/2004 – vigente desde 31/12/2004), quer daquelas que tramitam no Congresso Nacional ou das que fazem parte da agenda política, como por exemplo a proposta de reforma sindical, de que tanto temos ouvido falar.

 

III) Conclusão

 

As abordagens feitas nos tutoriais “Direito do Trabalho – Introdução – Partes I, II e III”, não tiveram a pretensão, até mesmo pelo modelo e espaço de exposição utilizados, de propiciar sequer uma iniciação de conteúdo aos nossos leitores, antes, tivemos como finalidade apresentar uma proposição temática que fosse capaz de instigar uns e outros à pesquisa e ao aprofundamento das questões abordadas.

 

Para finalizar esta parte introdutória, apresentaremos um pequeno apanhado, explicativo e conclusivo, de todo o exposto:

 

1) O mundo ocidental-cristão tem em suas primeiras impressões sobre a idéia de trabalho como resultante do pecado original;

 

2) As desigualdades sociais encontram, no trabalho, uma forma particular de efetiva expressão;

 

3) Há 03 (três) formas de “condição” de trabalho: compulsória (escravidão e servidão); livre (prestação regulada pela lei da oferta e da procura, sem ou com pseudo-assistência do Estado) e ; juridicamente livre (onde há regulação do trabalho, com normas construídas com a participação dos operários e da sociedade civil);

 

4) Na Inglaterra surgiram as primeiras normas sociais de feição trabalhista;

 

5) A encíclica “Rerum Novarum” foi um dos primeiros documentos que expressaram preocupação com os trabalhadores;

 

6) Não basta que o homem seja juridicamente livre; é necessário que ele seja livre de fato. Não basta que o trabalho seja não-compulsório para ser tido como efetivamente livre; ele terá que ser juridicamente-livre;

 

7) As normas trabalhistas no Brasil são, ainda, em grande medida, produto do governo ditatorial da Era Vargas.

 

VOCÊ JÁ OUVIU FALAR… MAS VOCÊ JÁ HAVIA LIDO ?

 

Carta-testamento de GETÚLIO VARGAS

 

Documento histórico dirigido à nação pelo presidente Vargas, a Carta-testamento foi encontrada no dia de sua morte, em 24 de agosto de 1954.

 

“ Mais uma vez, as fôrças e interêsses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim.

 

Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é impôsto (…). Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciarVoltei ao Govêrno nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma (…). Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.

 

Assumi o Govêrno dentro da espiral inflacionária que destruía os valôres de trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valôres do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sôbre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

 

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo à uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho êste meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito, a energia para a luta por vós e vossos filhos (…). Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gôta de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas êsse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.

 

Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte (…). Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”.

 

Vargas, Getúlio. Brasil presidente (1951-1954: Vargas). O governo trabalhista do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969, volume IV.

 

OBS.: O texto foi reproduzido de forma textual

Fonte: http://www.juliobattisti.com.br/artigos/direito/dirtrabintroducao003.asp

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